Décadas de evolução da presença das mulheres no mercado de trabalho foram postas em causa pela pandemia, avança a Adecco. Na linha da frente em profissões de risco, mas também em casa e nos cuidados aos seus, muitas acabaram por desistir e ainda não regressaram.
Na primeira vaga da pandemia, em 2020, houve um colapso no emprego feminino. A primeira e mais óbvia justificação é que as mulheres trabalham de forma desproporcional em sectores especialmente atingidos pela Covid-19. O relatório “Resetting Normal: Defining the new era of work”, realizado em 2021, concluiu que homens e mulheres experienciaram a pandemia de forma distinta e foram as mulheres que mais sentiram na pele as consequências: mais mulheres a sentirem-se em “burnout” (39% vs 36%), que o seu bem-estar mental declinou (34% vs 29%) e que ansiavam regressar ao escritório (46% vs 38%).
Peso do trabalho doméstico
Outra parte importante da causa desta saída das mulheres do mercado de trabalho é que, em muitas sociedades, ainda são as mulheres a suportar o peso do trabalho doméstico e dos cuidados familiares, que continuam a afastá-las do regresso ao trabalho. O inquérito, também de 2021, “Mulheres na Liderança. A análise das diferenças de género no topo das empresas” confirma o fardo que recai sobre as mulheres: cerca de 28% das quase 580 mulheres inquiridas dizem ser cuidadoras, ou seja, são responsáveis por cuidar de outras pessoas que não os seus próprios filhos.
A distribuição do tempo dedicado aos cuidados de outros é a variável que melhor explica o facto de esta responsabilidade ser um dos obstáculos à progressão da carreira: ultrapassa as 21 horas semanais para 42% das inquiridas com filhos menores e para 34% das cuidadoras. Isto significa que é como se as mulheres trabalhadoras, para além do seu contrato a tempo inteiro, tivessem também um contrato a tempo parcial adicional não remunerado.
“Não obstante este estudo ter sido feito em Itália, tendo em conta os hábitos socioculturais e familiares, não é de todo arbitrário plasmar os resultados para a sociedade portuguesa, sendo de considerar o agravamento do conservadorismo nacional que ainda mina o mercado de trabalho”, indica a Adecco. O inquérito referido diz que um em cada quatro homens tem dificuldade em aceitar uma liderança feminina: 46% referem ser ainda menos ouvidas do que os seus pares masculinos e 38% das mulheres entrevistadas identificam o principal obstáculo no facto dos homens, com as mesmas características (competências, qualificações, experiência, etc.), continuarem a ter o privilégio de chegar à gestão de topo. Por outro lado, para 36%, o principal obstáculo é representado pelo fardo dos cuidados com a família e pela falta de instrumentos de conciliação eficaz. Finalmente, 21% consideram o estereótipo das características masculinas impostas às mulheres que se querem afirmar como um obstáculo.
Regresso a um mundo de trabalho mais digital
O regresso lento das mulheres acentua um problema crescente que a Covid-19 veio acelerar: a digitalização da economia tem vindo a excluir as mulheres, devido ao défice sistémico do sexo feminino nas formações STEM (science, technology, engineering and mathematics). “Quanto mais importante é o digital na economia, menor é a probabilidade de os cargos mais importantes serem ocupados por mulheres”, sublinha a Adecco.
Para evitar que as mulheres se sintam excluídas desta rápida mudança para o digital, a consultora propõe quatro formas. Primeiro, há que definir modelos a seguir, de forma a mobilizar as jovens para estudar tecnologia. “Por mais superficial que possa parecer, é verdadeiramente importante que o mundo da ficção possa alavancar uma revolução cultural. Se pensarmos que a arte imita a vida, no caso, podemos afirmar que a igualdade e inclusão de géneros pode começar com a arte e ficção: há muitas mulheres cientistas que o são porque seguiram exemplos de outras cientistas ou de personagens fictícias, como Abby Scuito, da série Investigação Criminal Los Angeles. A astronauta Mae Jemison, a primeira mulher afroamericana a ir ao espaço, através do programa especial dos Estados Unidos, já reconheceu ter sido inspirada pela atriz Michelle Nichols, na série Star Trek”.
Segundo, os governos têm de acelerar a ação regulatória relativamente à discriminação salarial, solicitando, por exemplo, às empresas que provem estar a pagar a homens e mulheres de forma igual por trabalho de igual valor. Os governos devem ainda investir na prestação de cuidados, de forma a promover o regresso das mulheres ao mercado de trabalho, e priorizar as mulheres em programas de “upskilling” e “reskilling”. “A discriminação positiva é necessária. Se continuarmos à mesma velocidade, a igualdade de géneros vai chegar dentro de 267 anos”, refere.
Terceiro, tem de se pensar em formas mais adequadas de proporcionar formação digital adequada à vida das mulheres. Os podcasts são um exemplo e, para muitas mulheres, estes são uma oportunidade de absorver informação enquanto se ocupam de tarefas diárias. Muitas mulheres estão afastadas das profissões digitais porque pressupõem que estas são funções onde se trabalha de forma isolada, em frente a um computador, o que nem sempre corresponde à realidade. Muitas envolvem uma série de outras competências.
Quarto, os homens têm de se questionar sobre como podem contribuir para trazer mais mulheres ao mercado de trabalho. Veja-se o caso da luta pelos direitos civis dos anos 60, que envolveu inicialmente a luta de pessoas negras pelos seus próprios direitos, e o movimento Black Lives Matter, que se estendeu a outras áreas da sociedade e as levou a reconhecer a sua própria necessidade de mudar. “Ser um patrocinador é mais do que ser um aliado. Um patrocinador é alguém que fala (bem) de si quando não está presente na sala. As mulheres fazem isto por outras mulheres e os homens também o podem fazer”.