O título ilustra a contradição de um sector tantas vezes mal-amado por políticos, economistas e até consumidores. Nesta que é uma das mais antigas atividades no mundo e estruturante da vida coletiva, nomeadamente na urbanização das populações, até alguns dos que exercem a atividade empresarial no sector – em particular nos novos formatos – preferem designá-lo como “Distribuição”. Será por não quererem ser conotados com uma atividade vista como tradicional e antiquada? Pela minha parte, continuarei a falar de comércio, por canais físicos ou eletrónicos, e de comerciantes, pequenos ou grandes. O seu papel na economia e na sociedade foi, é e continuará a ser fundamental.
Vários economistas, dos clássicos aos marxistas, deram uma imagem do comércio como um sector parasitário. Contudo, na maioria das situações de hoje, não se vende um bem ou serviço, mas um conjunto integrado que engloba vertentes como a logística, o financiamento ou a assistência pós-venda, incluindo o marketing e a comunicação. Os comerciantes são também um agente estratégico na economia circular e na capacidade de alcançar os desafios de sustentabilidade.
É clara a posição charneira que o comércio tem na dinamização da competitividade transversal dos outros sectores da economia (agricultura, indústria). Disso é exemplo a interligação total e profunda entre a Indústria 6.0 e o comércio do futuro, considerado pelos especialistas como a sua alma gémea, na medida em que será a sua consequência direta e inseparável. Hiperpersonalização, hiper-realidade, ligação entre economia circular e economia regenerativa e outras ligações redefinem os próprios conceitos de bem e serviço e a experiência de consumo.
Um desafio ao sector
O desenvolvimento económico gerou novos formatos de comércio que concorrem, evoluem e têm conflitos entre si na afirmação no mercado. Cada um demonstrou corresponder a necessidades específicas dos consumidores. Uns atingiram já fases de maturidade e outros – como o comércio eletrónico, mais recente – estão numa fase de crescimento exponencial em vários segmentos de mercado. Subsistem mesmo alguns dos mais antigos, como feiras e mercados ajustados aos tempos atuais, e que são uma demonstração de resiliência.
Temos de encontrar meios de nos afirmar em conjunto, que sinalizem o peso do comércio na economia. Aliás, a valorização sem complexos dos serviços (onde se inclui o comércio) tem sido uma das batalhas fundamentais da CCP nesta fase do desenvolvimento económico. Sem desvalorizar toda a cadeia de valor, desde a agricultura à indústria transformadora, uma das componentes mais significativas do valor acrescentado, a intangível, encontra-se no comércio e serviços. E este é um grande desafio na economia do século XXI.
Na abertura das comemorações dos 50 anos da CCP, apresentámos um estudo e organizámos um debate sobre o impasse do modelo económico alemão, o “motor da Europa”, cuja evolução marcaria, contudo, o seu atraso em relação aos Estados Unidos da América e à China na revolução digital e na IA. Esse modelo foi, durante muitos anos, apresentado por governantes e economistas como o que Portugal deveria seguir. Há muito que a CCP se demarcou dessa perspetiva, focando-se no valor acrescentado e o intangível dos serviços como aspetos estruturantes do futuro da economia.
Existirão sempre contradições internas ao sector, que têm de ser encaradas dentro dos seus limites. Os conflitos devem ser colocados no seu enquadramento histórico. Há cerca de 15 anos, a CCP procurou resolver essa situação propondo a unificação do sector em termos associativos. Essa situação, que não foi possível concretizar, constitui ainda hoje um fator de fraqueza estratégica do comércio e serviços.
Há que pensar em formas eficazes de atuação para que, no conjunto, se crie uma capacidade de apresentar posições fortes e consistentes face à evolução económica do país. Com diálogo, trabalho e criatividade, propomo-nos a trabalhar nesse sentido.
Um desafio ao Governo
Os sectores do comércio e da generalidade dos serviços representam mais de 80% das empresas não financeiras e mais de 70% do volume de negócios e do VAB. Só o comércio representa próximo de 750 mil postos de trabalho, sendo o maior empregador privado em Portugal.
No Governo anterior, não havia ministério nem secretaria de Estado referente a este sector. A situação foi corrigida no atual, em que existe um interlocutor definido para o comércio (e serviços).
Com um ministério que agrupa a Economia e a Coesão Territorial, com os fundos europeus, está criado um espaço de interlocução importante para ultrapassar vários dos atrasos e desqualificações sofridas ao longo das últimas décadas. O Turismo, pelo seu peso e papel na atual conjuntura e pelos meios próprios de financiamento de que dispõe, tem e terá no futuro o seu papel a desempenhar. Não é o “nosso terreno”, independentemente de, como dizia o poeta, “tudo isto andar ligado”.
Recuperar o atraso da Agenda para a Competitividade do Comércio e Serviços
A adaptação das empresas de comércio e serviços aos eixos do Portugal 2030 está muito atrasada. A taxa de execução do PT2030 era, em junho de 2025, de apenas 8,6%, caindo para 1,3% no Compete2030. Programas regionais apresentavam igualmente baixas execuções (Norte 1,9%, Centro 4%, Alentejo 2,9%). No último relatório sectorial (ADC, fevereiro de 2025), o comércio representava apenas 1,8% dos incentivos aprovados no Compete2030. O facto de o PT2030 se encontrar em processo de revisão intercalar impõe que se aproveite o momento para corrigir em tempo útil as limitações atuais.
É urgente, nesta revisão intercalar, definir uma matriz clara de responsabilidades, prazos, montantes e calendários de avisos específicos para estes sectores, bem como reforçar a comunicação, aumentar a adesão e melhorar a qualidade das candidaturas.
Em paralelo, há que encontrar, com o movimento associativo, modos de ultrapassar as limitações de operacionalização dos projetos de formação/ação, historicamente dos mais eficazes para a melhoria das pequenas e médias empresas do sector.
Procurar terminar eficazmente os projetos do digital enquadrados no PRR
Para os dois únicos projetos específicos aqui integrados, os Bairros Digitais e as Aceleradoras Digitais, é urgente alargar os primeiros até no quadro das disponibilidades de verbas existentes no PRR. Quanto às aceleradoras, há que agilizar e colocar em prática as medidas propostas pelos intervenientes, em particular as propostas da CCP, de modo a serem atingidos os objetivos adaptados à realidade atual.
Urbanismo comercial/cidades
As cidades enfrentam desafios como sustentabilidade, mobilidade, envelhecimento demográfico, pressão turística e oferta imobiliária adequada. É fundamental adotar políticas de urbanismo comercial que valorizem negócios de proximidade e promovam a gestão integrada do espaço urbano, incorporando a dupla transição digital e climática, e que respondem efetivamente às necessidades das comunidades.
É importante ser inovador. Por exemplo, Barcelona utiliza parte da taxa turística para melhorar espaços públicos e para criar corredores comerciais, onde se combinam espaços de consumo, atração turística e lazer, assim valorizando a qualidade de vida dos residentes.
Neste momento, temos vindo a trabalhar com o Governo para que seja criado um programa específico que apoie a requalificação/regeneração urbana com base nas atividades de comércio e serviços. Esperamos que a primeira fase, através de uma experiência-piloto em dez centros urbanos, se inicie com a máxima prioridade.
