in

Urnas e armas marcam o ano de 2024

Foto Shutterstock

2024 será um ano de urnas e armas. As eleições realizadas em mais de 70 países, que funcionarão como um teste de resistência ao sistema democrático, e o impacto da multiplicidade de conflitos que alimentam a instabilidade global definirão um mundo em plena transição de poder e em claro retrocesso humanitário e de direitos fundamentais.

Esta é uma das principais conclusões da análise do Cidob – Barcelona Centre for International Affairs, sobre o mundo em 2024, um ano em que, segundo este “think tank”, se acentuará a erosão das normas internacionais vigentes e aumentará a imprevisibilidade. “2024 começa totalmente aberto, marcado por um mundo cada vez mais diverso e (des)ordenado, definido por alianças e interesses em mudança em questões como a competição geopolítica, as transições verde e digital ou a segurança internacional. As consequências económicas de crises sucessivas serão mais visíveis do que em anos anteriores: o crescimento económico será fraco e o abrandamento chinês reverberará nas economias emergentes, cada vez mais pressionadas pelas condições financeiras mais restritivas e pela força do dólar”, indica a análise.

 

Mais de 70 processos eleitorais

2023 foi um dos anos mais conflituosos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em apenas 12 meses, a violência política aumentou 27%, alerta o Cidob. Por exemplo, mais de 130 trabalhadores humanitários da ONU foram mortos em Gaza, desde 7 de outubro, o maior número num único conflito. Estima-se que uma em cada seis pessoas no mundo tenha sido exposta a conflitos nos últimos 12 meses.

Com guerras abertas na Ucrânia, Palestina, Sudão e Iémen, o mundo tem o maior número de conflitos ativos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Por isso, a agenda geopolítica para os próximos meses está entrelaçada a partir do impacto mútuo entre os diferentes conflitos armados e do veredicto que será lançado pelos mais de 70 processos eleitorais marcados no calendário. “Um regresso de Donald Trump à Casa Branca mudaria completamente o equilíbrio de poder e a posição de Washington em cada um destes conflitos, desde o fornecimento de armas ao governo ucraniano, ao apoio a Israel ou no confronto com a Rússia ou a China”.

Mais quatro mil milhões de pessoas irão às urnas, em 2024, mas, de acordo com o Cidob, isso não significará mais democracia. “Estamos em tempos de inteligência artificial e extrema sofisticação da manipulação, que ameaçam a confiabilidade das urnas. Os sistemas híbridos estão a ganhar terreno e resta saber se o ciclo eleitoral de 2024 acabará por ser um momento de aprofundamento da degradação ou de resistência democrática”.

Quase 51% a população mundial será, então, chamada às urnas. Mas enquanto a maioria dos cidadãos destes países votará em democracias plenas ou imperfeitas, um em cada quatro eleitores participará em eleições em regimes híbridos e/ou autoritários. O Cidob nota que países como a Rússia, a Tunísia, a Argélia, a Bielorrússia, o Ruanda ou o Irão irão instrumentalizar estes processos eleitorais para tentar reforçar as lideranças no poder e ganhar legitimidade aos olhos dos seus cidadãos, enquanto a outra metade do eleitorado exercerá o seu direito de voto em países que, nos últimos anos, mostraram erosão democrática, como os Estados Unidos ou a Índia.

Recorde-se que 2023 encerrou com a tomada de posse do “anarcocapitalista” Javier Milei na presidência da Argentina, o que, alerta o Cidob, “confirma a profunda crise dos partidos tradicionais e a ascensão de agendas radicais”.

O futuro da União Europeia, que enfrenta duas guerras no seu interior, será também decidido nas urnas. Além das eleições para o Parlamento Europeu, que decorrerão entre 6 e 9 de junho, 12 Estados-membro também vão a votos. As eleições legislativas na Bélgica, em Portugal e na Áustria serão um bom termómetro para medir a força da extrema-direita, que aspira a sair mais forte das eleições para o Parlamento Europeu, destaca o Cidob. As novas maiorias na União Europeia serão cruciais para decidir o futuro dos compromissos em matéria de clima, a continuidade da ajuda à Ucrânia e as reformas institucionais urgentes que deverão facilitar a entrada de futuros membros.

 

Desconexão social

O “think tank” sustenta, então, que a incerteza política e eleitoral, bem como a multiplicidade de conflitos que marcarão 2024, alimentarão ainda mais o fosso entre a sociedade, as instituições e os partidos políticos. O número de pessoas que dizem evitar ver as notícias mantém-se perto dos máximos históricos e é particularmente visível na Grécia (57%), Bulgária (57%), Argentina (46%) e Reino Unido (41%). Especificamente, esse cansaço aponta, segundo o Instituto Reuters, para questões como a guerra na Ucrânia (39%), a política nacional (38%) e eventos relacionados com a justiça social (31%) com altos níveis de politização e polarização.

Esta redução no consumo jornalístico tem ocorrido, contudo, em paralelo com um maior uso das redes sociais. As novas gerações, por exemplo, estão a prestar cada vez mais atenção aos influenciadores do que aos jornalistas. Ao mesmo tempo, a fragmentação das redes sociais está a aumentar. A migração de utilizadores para o Instagram ou TikTok também alterou a forma como as notícias são consumidas, com uma priorização de conteúdo de lazer em vez de conteúdo noticioso.

“Não é apenas uma renúncia voluntária à informação, mas esta tendência de desconexão também levou a uma redução da participação social e dos debates nas redes sociais, como experimentado durante a Primavera Árabe, em 2011, na mobilização MeToo ou no Black Lives Matter. Quase metade dos utilizadores de redes sociais abertas (47%) já não se envolve nem reage às notícias. Além disso, a desconexão da informação também está ligada à desconexão política e às transformações sociais que alteraram claramente o comportamento eleitoral. As alterações demográficas relacionadas com o uso da tecnologia e o contexto de permanente volatilidade resultaram também numa menor fidelidade dos eleitores, o que contribuiu para a crise dos partidos tradicionais. O elemento identitário de pertencer a um partido sofreu mutações entre os jovens. A identificação constrói-se a partir da posição sobre questões como as alterações climáticas, a imigração, o racismo, os direitos das mulheres ou o coletivo LGTBI+, ou mesmo o conflito israelo-palestiniano”, descreve o Cidob.

Com a ascensão e consolidação da inteligência artificial, a desinformação será um dos desafios adicionais deste ano, já que seu rápido progresso, especialmente no domínio generativo, pode lançar “uma sombra ainda maior sobre a confiança na informação e nos processos eleitorais”. Indica a análise que o refinamento dos “deepfakes”, a criação rápida e fácil de imagens, textos, áudios ou propaganda por inteligência artificial, bem como a crescente dependência das redes sociais para consultar e ser informado sobre a realidade representam um terreno fértil para a desinformação, numa altura em que ainda não existe um controlo efetivo destas tecnologias.

 

Regulação da inteligência artificial

De facto, 2023 foi o ano do surgimento da IA generativa, da apresentação pública do ChatGPT que, em janeiro, apenas dois meses após o seu lançamento, já contava com 100 milhões de utilizadores e, em agosto, atingiu os 180 milhões.

Mas a revolução trouxe também consigo uma nova consciência dos riscos, aceleração e transformação desta tecnologia, pelo que 2024 será um ano crucial para a regulamentação. A iniciativa mais ambiciosa é a da União Europeia, que está determinada a tornar-se a primeira região do mundo a adotar uma lei abrangente para regular a inteligência artificial. A União Europeia optou por classificar os riscos (inaceitáveis, elevados, limitados ou mínimos) colocados pela utilização de sistemas de IA e exigirá a realização de uma avaliação de impacto sobre os direitos fundamentais antes de um sistema alto risco poder ser colocado no mercado. O acordo alcançado em 7 de dezembro será ratificado no primeiro trimestre e dará lugar a um período de dois anos até à sua plena implementação, em 2026.

No âmbito desta aceleração regulamentar, 2024 será também o ano em que a União Europeia implantará, em todo o seu potencial, nova legislação em matéria de serviços e mercados digitais, para estabelecer limites e obrigações ao poder de monopólio das grandes plataformas e à sua responsabilidade pela disseminação algorítmica de desinformação e conteúdos prejudiciais. Desde 1 de janeiro, as Big Tech enfrentam o imperativo de cumprir estes regulamentos, com as potenciais multas por incumprimento a atingirem até 6% do volume de negócios global, de acordo com o DSA (Digital Services Act) e entre 10% e 20% do volume de negócios global, de acordo com o DMA (Digital Markets Act).

 

Ressaca económica

Em 2024, as consequências económicas da sucessão de crises vividas nos últimos anos serão também mais visíveis, especialmente o impacto da subida das taxas de juro para fazer face ao maior pico da inflação em 40 anos. Além disso, condições de financiamento mais apertadas restringirão a política fiscal, após o rápido aumento dos empréstimos para lidar com os impactos da Covid-19 e da guerra na Ucrânia.

Neste contexto, o crescimento será fraco, indica o Cidob. O Fundo Monetário Internacional (FMI) não espera que a inflação esteja na meta da maioria dos bancos centrais até 2025, o que augura taxas de juro elevadas durante um longo período de tempo, especialmente se os preços do petróleo voltarem a estar sob pressão, num contexto de elevada incerteza geopolítica. A previsão de crescimento do FMI para 2024 é de 2,9%, um valor muito semelhante ao estimado para 2023 e inferior às taxas de crescimento pré-pandemia.

No entanto, o arrefecimento será desigual entre as economias. Os Estados Unidos parecem ter evitado a recessão, graças a um forte mercado de trabalho e estímulos fiscais, mas na União Europeia haverá um maior escrutínio nas contas públicas, especialmente em países com uma margem financeira menor, como a Itália.

Será também necessário acompanhar de perto a evolução de uma China que enfrenta o seu menor crescimento económico em 35 anos, com exceção dos anos de Covid-19. Por sua vez, os países emergentes sentirão fortemente a desaceleração chinesa, especialmente aqueles com maior dependência comercial e financeira.

De facto, de acordo com a análise, um grande número de países emergentes encontra-se numa situação orçamental delicada que agrava também a sua vulnerabilidade externa. Embora alguns deles, como o México, o Vietname ou Marrocos, estejam a tirar partido da reconfiguração das cadeias comerciais e de valor (nearshoring), a maioria pode ser negativamente afetada por um cenário de maior fragmentação económica. De acordo com a Organização Mundial do Comércio, o comércio de bens entre dois hipotéticos blocos geopolíticos – com base nos padrões de votação nas Nações Unidas – cresceu 4% a 6% mais lentamente do que o comércio dentro desses blocos, desde a invasão da Ucrânia.

Retrocesso nos compromissos internacionais

2023 deixou a cooperação internacional em risco. Numa linguagem cada vez mais contundente, António Guterres declarou que o mundo está “lamentavelmente fora do rumo” na concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que em 2023 chegaram a meio caminho da sua implementação. 2024 tem, assim, de demonstrar se a comunidade internacional ainda é capaz, e está disposta, a chegar a acordo sobre respostas coordenadas a problemas globais partilhados, através de órgãos de governação coletiva.

Pela primeira vez, a Agência Internacional de Energia (AIE) projetou que a procura global por petróleo, carvão e gás natural atingirá o pico nesta década, com base apenas nas configurações políticas atuais, de acordo com o World Energy Outlook 2023. A COP28, no Dubai, foi a primeira a apresentar um texto que reconhece explicitamente a necessidade de deixar para trás os combustíveis fósseis, mas o grau de ambição demonstrado não é suficiente para cumprir os objetivos do Acordo de Paris. Além disso, embora a criação de um Fundo de Perdas e Danos para compensar os países mais afetados pelas alterações climáticas também seja um passo positivo, a arrecadação inicial de 700 milhões de dólares fica muito aquém do necessário. Todos os anos, os países em desenvolvimento enfrentam perdas de 40 mil milhões de dólares ligadas à ação climática.

“Neste contexto, não só existe o risco de agravamento dos impactos climáticos, como também assistiremos a tensões sociais e políticas ainda mais fortes entre governos e sociedades sobre a exploração dos recursos”, alerta o Cidob. “Há uma insatisfação crescente com as políticas de transição climática da União Europeia na Europa e a previsível ascensão de forças eurocéticas e de direita radical nas eleições para o Parlamento Europeu de junho de 2024 pode aumentar ainda mais essa pressão. A hiperatividade regulatória em questões climáticas e industriais está a aumentar a politização desta questão, alimentando a agitação social em certos Estados-membro. Itália, Polónia, Países Baixos e parte da Alemanha, especialmente o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), estão a tentar limitar as ambições climáticas da União Europeia. A chegada do novo Governo sueco, apoiado pela direita radical, pôs um travão aos compromissos climáticos assumidos por um dos países que mais contribuiu para as políticas ambientais da União Europeia. Um regresso de Donald Trump à Casa Branca também abalaria alguns dos limitados progressos nacionais e internacionais nesta área”.

No início de 2024, entrará em vigor a Lei das Matérias-Primas Críticas, que visa garantir o fornecimento de níquel, lítio, magnésio e outros materiais essenciais para a transição verde e indústrias estratégicas, vitais para veículos elétricos e energias renováveis, equipamentos militares e sistemas aeroespaciais, bem como computadores e telemóveis. Neste contexto, a União Europeia planeia relançar a exploração mineira no continente, decisão que pode mobilizar protestos ambientais nos próximos meses.

Também em 2024, espera-se que os Estados-membro das Nações Unidas cheguem a um acordo global para acabar com a poluição por plástico. Será um tratado internacional juridicamente vinculativo, considerado o pacto ambiental multilateral mais importante desde o Acordo de Paris, e que estabelecerá um plano de ação até 2040.

No entanto, são as políticas de género e as políticas de migração que estão mais expostas a esta onda radical que transformou as agendas governamentais, especialmente na União Europeia e na América Latina. Embora seja verdade que, durante 2023, a igualdade de género recuperou para os níveis pré-pandemia, o ritmo de progresso abrandou. A este ritmo, serão necessários 131 anos para atingir a paridade total. Embora a proporção de mulheres contratadas para cargos de liderança tenha aumentado constantemente cerca de 1% ao ano globalmente nos últimos oito anos, essa tendência inverteu-se em 2023, regredindo para os níveis de 2021.

 

Crise humanitária

As guerras e a violência levaram o deslocamento forçado em todo o mundo a um recorde estimado de 114 milhões de pessoas, no final de setembro de 2023, de acordo com o ACNUR. Os principais motores destas deslocações forçadas foram a guerra na Ucrânia e os conflitos no Sudão, na República Democrática do Congo e em Mianmar, bem como a seca, as inundações e a insegurança na Somália, bem como uma prolongada crise humanitária no Afeganistão. Só nos primeiros seis meses de 2023, foram apresentados 1,6 milhões de novos pedidos de asilo individuais a nível mundial, o número mais elevado alguma vez registado.

Este aumento do número de refugiados e de pessoas deslocadas não foi, contudo, acompanhado por um reforço da ajuda internacional necessária para fazer face às suas necessidades. 2,3 mil milhões de pessoas, quase 30% da população mundial, estão agora à beira de uma insegurança alimentar moderada ou grave.

O aumento contínuo dos preços dos alimentos em 2024 e o impacto das condições climáticas adversas na produção agrícola podem agravar ainda mais esta situação. Os especialistas alertam para o risco de uma nova crise do arroz, como resultado da restrição à exportação imposta pela Índia, para tentar conter os efeitos da queda na produção interna. A onda de expansão desta proibição também levou a preços mais altos do arroz na Tailândia e no Vietname, o segundo e terceiro maiores exportadores de arroz depois da Índia, que viram os preços subirem 14% e 22%, respetivamente. Somam-se a isso os efeitos do fenómeno climático El Niño, que podem prejudicar a produção em 2024.

Siga-nos no:

Google News logo

Pinterest-Predicts-Tomorrows-Trends-Todaywebp

Fusões culinárias entre as tendências na alimentação, segundo o Pinterest

Lidl

Lidl é a marca mais simples do mundo