FMCG 2023: um thriller em dez episódios

Pedro Pimentel, diretor geral Centromarca
Pedro Pimentel, diretor geral Centromarca

As plataformas de streaming criaram, para muitos, o hábito de ver séries televisivas de uma assentada. Este grupo de espectadores – onde me incluo – aproveitam as janelas possíveis de tempo para episódio após episódio, ver as séries mais interessantes quase em overdose, sempre com o dilema de ver, ou não, mais um episódio, havendo, claro, séries diferentes, de géneros diferentes, para gostos diferentes.

Proponho-vos ler o roteiro desta “‘série”, um thriller com o q.b. de drama e de suspense, que antecipa o que o sector dos Fast Moving Consumer Goods (FMCG) ou, se quiserem, do grande consumo irá enfrentar ao longo do próximo ano. Uma produção com actores de referência e custos que se antecipam muito elevados. Um argumento que, sem demasiadas surpresas, nos prende ao ecrã porque, a dada altura, todos nos sentimos parte da história.

 

TEMPORADA 2023 – EPISÓDIO PILOTO: O REINO DA INCERTEZA

Há quase 2.500 anos, na antiga Grécia, Sócrates assumia que “só sei que nada sei”. Nos tempos que vivemos, popularizou-se a adaptação da frase de Bauman indicando que “a única certeza é a incerteza”. Vivemos, sem dúvida, tempos incertos, complexos e adversos, motivados por factores tão diversos como uma guerra sem solução à vista, uma desaceleração clara da globalização, um reforçado populismo e radicalismo, uma debilidade crescente das lideranças das grandes potências, alterações e acidentes climáticos ou o receio de novas pandemias.

Portugal atravessa um período de convulsão que conjuga uma liderança cansada, um estatismo crescente, uma economia que não soube alavancar o clima económico favorável da década passada, uma saída da crise pandémica para um mergulho quase imediato no hemorrágico tsunami inflacionista. Vivemos no reino da incerteza…

Tudo isto mina a confiança de pessoas e empresas, quebra expectativas, limita investimentos, afecta tomadas de decisão, inibe um pensamento de médio e longo prazo e impacta fortemente os mercados. Mesmo o sector FMCG, geralmente mais resiliente, sentiu muito rapidamente e, especialmente, na segunda metade de 2022, os efeitos desta convulsão. Por baixo do efeito “balofo” da inflação, sente-se uma quebra significativa do mercado.

E, em 2023, as coisas vão certamente piorar antes de melhorar.

 

EPISÓDIO 1: QUEBRA DO PODER DE COMPRA

Se, para uma parcela muito elevada das famílias, 2022 “ofereceu” uma quebra do poder de compra que pode exceder os 5%, com uma inflação galopante que vai fechar o ano acima dos 8%, para as famílias com recursos mais débeis e maior peso nas despesas em energia e bens essenciais, pode subir mais uns pontos percentuais.

Para 2023, fica a convicção de que a reposição daquela quebra não irá acontecer, como pode mesmo agravar-se. O crescimento de preços é autofágico e padece de uma inércia que fará com que, mesmo que os factores de convulsão que o estão a motivar possam esmorecer (o que não é ainda sequer projectável), a quebra da taxa de inflação, ainda que por mero efeito matemático, demora muito tempo a ocorrer. Acresce que o agravamento das taxas de juro gerará, para centenas de milhares de famílias que possuem créditos à habitação, ou ao consumo, uma diminuição ainda mais substancial do rendimento disponível.

 

EPISÓDIO 2: EFERVESCÊNCIA SOCIAL

O corte, com as votações das Legislativas antecipadas de Janeiro último, dos derradeiros nós que haviam sido “atados” com a constituição da geringonça de 2015, a hecatombe eleitoral da extrema-esquerda (e, em especial, do PCP) e o agravamento da crise económica fizeram, nos últimos meses, aumentar – como era fácil de prever – a contestação sindical.

Na ausência de força (e poder) parlamentar, a energia será canalizada para as “ruas”. Vamos ver suceder as greves e, como habitualmente, será nas estruturas do Estado e nos transportes públicos que esses efeitos se irão, por certo, sentir mais significativamente. Essa contestação mina a confiança dos cidadãos, a sua mobilidade, a previsibilidade dos seus movimentos e afecta, obviamente, o mercado. Há ainda a possibilidade dessa contestação escalar para outros sectores de actividade, como o dos transportes, com capacidade de interferir ainda mais fortemente no funcionamento do mercado.

 

EPISÓDIO 3: DOWNTRADING

Nada tem de surpreendente. O efeito mais imediato da perda de poder de compra das famílias é o chamado “downtrading”. O consumidor, com menor capacidade aquisitiva, pretende comprar um cabaz de produtos tão próximo quanto possível da sua compra habitual, mas não aumentando o valor gasto (pelo menos, em medida equivalente ao incremento da inflação).

Numa fase inicial, um maior recurso às promoções e algum retrocesso na gama de produtos comprada poderia parecer suficiente para compensar os aumentos dos preços respectivos. Mas à medida que a inflação se agrava, essas estratégias começam a não parecer suficientes e, para 2023, não espantará que as quebras, mesmo a nível de volumes comprados, se tornem cada vez mais notórias, assim como a transferência das compras de produtos das marcas de fabricante para os produtos das marcas próprias dos retalhistas.

Esta mutação irá gerar problemas crescentes de rentabilidade para os retalhistas (que vêem o seu equilíbrio financeiro afectado pelas menores margens das suas próprias marcas e o crescente peso destas nas suas vendas globais) e de sustentabilidade para os fabricantes, que com a potencial redução de vendas poderão ver ser colocadas em causa a sua estrutura operacional e a massa crítica que justifica uma participação activa no mercado.

 

EPISÓDIO 4: O NÓ DA SUPPLY CHAIN

Os últimos três anos, entre pandemia e conflito no leste europeu, criaram um verdadeiro imbróglio logístico, que afectou a movimentação de pessoas e, ainda mais, de cargas e que mostrou à sociedade as limitações e fragilidades de um modelo assente em compressão de stocks, custos “hiper espremidos” e dependência elevadíssima de produtos e factores de produção provenientes de mercados distantes e de modos de produção regidos por regras distintas.

As empresas suspiraram durante meses por abastecimentos de proximidade e transportes fluidos, mas o regresso a alguma normalidade parece ainda longe de acontecer, com as dificuldades em colocar viaturas operacionais, em contratar motoristas e em redefinir rotas que se alteram em conformidade com a busca constante de novas origens de combustíveis, matérias-primas e todos os outros produtos de que necessitamos para desenvolver a actividade económica. Somem-se os crescentes impactos financeiros da constituição de stocks que (pelo menos nos volumes actuais) não existiam até aqui, cuja armazenagem e imobilização tem ainda o custo acrescido motivado pelo agravamento das próprias taxas de juros e das rendas.

 

EPISÓDIO 5: IN-HOME VS. OUT-OF-HOME

O ano de 2022 representou uma lufada de ar fresco para sectores como o turismo, as diversões nocturnas ou as cafetarias e restauração, com o retorno das pessoas a uma mobilidade normalizada e o regresso, em força, dos turistas estrangeiros (e nacionais) ao nosso país. Depois, claro, de dois anos de asfixiante agonia. Mas a pandemia deixou, apesar disso, marcas que se continuaram a sentir como as ligadas ao “home office” e às “meal deliveries”.

Se em 2020 e 2021 foi a doença que empurrou as pessoas para casa, em 2023, pode acontecer esse retorno, desta vez motivado pelas dificuldades económicas e pela incapacidade de suportar os custos acrescidos com a alimentação fora de casa. Mesmo com a inflação dos produtos alimentares e dos restantes itens que compramos no retalho alimentar, comer ou cozinhar em casa será, para muitos, não uma opção ou um prazer, mas, acima de tudo, um imperativo, antecipando um novo ano de dificuldades para o canal Horeca.

 

EPISÓDIO 6: TURISMO E EXPORTAÇÕES

Mesmo com um arranque relativamente tímido, 2022 acabou por mostrar uma enorme pujança para o turismo em Portugal, sendo que, ao que sei, fecharemos o ano com um valor de dormidas e de entradas no país a superar os recordes do final da década passada. As receitas por estadia também terão crescido, não apenas por força da inflação, mas também pelo posicionamento cada vez mais forte da hotelaria e restauração nacionais. Do lado das exportações agro-alimentares, as informações correspondem a mais um ano de superação e novos máximos, num percurso de crescimento sustentado que vem desde o período da troika.

Mas 2023 tem condições para motivar um hiato nestes percursos. A crise que se vive é global e afecta muito especialmente a Europa comunitária, onde – como todos sabemos – se localizam os principais mercados de destino das nossas exportações e que são também os países de origem de uma elevadíssima parcela dos turistas que nos visitam. Não serão apenas os portugueses a sentir que a sua carteira estará mais vazia no próximo ano. E um canal Horeca mais débil e uma capacidade exportadora limitada significará que a generalidade dos fornecedores nacionais estará ainda mais exposta e mais dependente da moderna distribuição em Portugal, que será, ela própria, ainda mais exigente, mais pressionante e mais extractora.

 

EPISÓDIO 7: EVITAR OS ERROS

Com as perspectivas de compressão do mercado, de abandono de consumo dos produtos de maior valor e de transferência da compra para outras marcas, muitas empresas têm, obviamente, de reequacionar as suas estratégias e prioridades. E introduzir novas ideias e linhas de actuação, muitas vezes bastante radicais, na expectativa de defenderem a sua quota de mercado e a sua rentabilidade.

Mas pode ser também um período fértil em ideias que não geram resultados, de que podem ser exemplo a reduflação dos produtos ou a redução da qualidade das respectivas composições, a aposta excessiva em produtos “low cost” ou em produtos XXL, a utilização de promocionais excessivos, destruidores de valor e de reputação, ou ainda o não dar a necessária atenção às franjas de consumidores que, ainda assim, mantêm um bom poder de compra e uma preferência por produtos e marcas de referência. Evitar estes erros significará não perder o consumidor no presente, oferecendo-lhes boas propostas de valor, adequadas a cada tipologia de consumidor, mas significará também evitar grandes dores de cabeça no futuro, quando a retoma chegar.

 

EPISÓDIO 8: NOVAS ROTINAS E NOVOS HÁBITOS

Estes três últimos anos geraram um elevado número de novas rotinas e novos hábitos. Trabalho, mobilidade, saúde, comunicação, logística, comércio ou consumo foram fortemente impactados pelo efeito sequencial da pandemia, disrupção e inflação, modificaram sobremaneira hábitos e rotinas enraizados desde há anos.

No mundo FMCG, é notória a redução da cesta em cada acto de compra. As limitações financeiras levam muitos consumidores a optar por apenas adquirir os produtos necessários aos actos de consumo mais próximos, preferindo repetir as visitas às lojas, aproveitando as melhores oportunidades, optimizando a compra e reduzindo desperdício. Este cenário favorece claramente as lojas de proximidade em relação aos espaços periféricos e de maior dimensão. Este pragmatismo de compra pode favorecer, ainda, para os consumidores com menos limitações de carteira, o recurso à compra online, mais pragmática e programática, desde que sinta ter um custo suportável ao nível de portes de entrega.

 

EPISÓDIO 9: REJUVENESCER O PROMOCIONAL

Os períodos de quebra do rendimento disponível das famílias são, sem surpresa, aqueles em que os consumidores dão maior atenção aos preços e às melhores oportunidades de compra dos seus produtos favoritos. Basta recordar a crise da troika, para facilmente se perceber o quanto o promocional funcionou como factor de resiliência das marcas, de resistência dos retalhistas mais convencionais e de abrandamento do crescimento das marcas próprias.

Contudo, a saturação do promocional, seja em dimensão, seja em profundidade, retira – pelo menos nos moldes actuais – grande parte do poder que poderia ter como factor de tracção do mercado e de aproximação das marcas ao consumidor. Hoje, mais do que um factor de dinamização de vendas, as promoções converteram-se num acelerador de tráfico das lojas e de canibalização da chamada venda-base, sendo necessária a reinvenção do fenómeno, o seu afastamento das mecânicas mais saturadas, a criação de campanhas não associadas apenas à competição e redução de preços, o desenvolvimento de acções de “cross-selling”, oferecendo valor adicionado ao consumidor e fugindo da saturação do percentual ou do preço riscado.

 

EPISÓDIO 10: A FAMÍLIA ‘DADE’

As dificuldades que as empresas e os consumidores irão enfrentar não farão baixar a pressão sobre vários desafios societários considerados urgentes e incontornáveis, a começar, obviamente, pelos temas da SustentabiliDADE (e não apenas na vertente ambiental) e da ResponsabiliDADE social, corporativa e ao nível das políticas de inclusão. O combate ao desperdício e a chamada FrugaliDADE estão no topo da agenda. E, nestes momentos difíceis, o consumidor deseja expressar, com as suas compras, um sentimento de pertença e de comunidade, um compromisso patriótico, exigindo a fornecedores e retalhistas uma acrescida PortugaliDADE das suas propostas e sortido.

E mesmo que, depois, à frente da prateleira, a opção de compra possa até recair sobre o produto mais económico, independentemente da origem, do modo de produção, das práticas da empresa ou do maior ou menor desperdício em termos de embalagem, o consumidor e a opinião pública (hoje tão facilmente expressa nas redes sociais) não perdoarão falhas a este nível, nem serão condescendentes com os que utilizarem o argumento do adicional de custos que a adopção dessas boas práticas pode gerar.   

 

EPÍLOGO

Como qualquer boa série, a FMCG 2023 pode levar a diferentes finais, havendo personagens que, ao longo da mesma, podem ganhar surpreendente protagonismo e outros que são retirados do elenco a dada altura. Tal como nos verdadeiros shows televisivos, também aqui são os espectadores/consumidores que decidem a popularidade dos personagens e a continuação, ou não, da série para próximas temporadas.

Num ano tão complexo e desafiador como o que se iniciará em poucas semanas, é normal que os prognósticos sejam negativos, depressivos e desmotivadores. Mas quando as expectativas são tão baixas, há sempre boas surpresas possíveis. Um bom ano agrícola, o arrefecimento dos custos energéticos, a estabilização dos fluxos logísticos, alguma moderação social, o desejo (apesar de tudo) de viajar e de manter alguns bons hábitos de consumo dentro e fora de casa, boas campanhas comunicacionais e promocionais, uma inovação que contribua para o bem-estar das pessoas são tudo factores que podem, ainda assim, fazer melhorar a performance de um ano para o qual se parte com bases, infelizmente, muito negativas.

* O autor escreve ao abrigo da grafia pré-Acordo Ortográfico

 

Este artigo foi publicado na edição N.º 78 da Grande Consumo.

Pedro Pimentel, diretor geral Centromarca
Pedro Pimentel
Diretor Geral Centromarca

Gonçalo Lobo Xavier, diretor geral APED

2023: um ano de desafios e de todas as incertezas

Armando Mateus, Chief Experience Office Touchpoint Consulting

António e a Lâmpada Mágica!