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Vinho de Talha: tradição milenar com identidade local

Das vinhas velhas com castas autóctones que distinguem um forte carácter regional, das ripadeiras ou desengaçadores elétricos onde se separam os bagos do engaço, das vasilhas de barro que hoje enriquecem as adegas modernas e tecnológicas nasce um vinho com mais de dois mil anos de história. Cada produtor e localidade têm a sua própria tradição e o seu modo de fazer vinho de talha, mas o substancial da vinificação em talha pouco mudou: uvas esmagadas são colocadas dentro das talhas de barro e a fermentação ocorre espontaneamente. A Grande Consumo conversou com a José Maria da Fonseca, a Adega Cooperativa da Vidigueira, Cuba e Alvito e a Herdade do Rocim, em essência empresas distintas, mas cada uma representante desta milenar cultura do vinho no Alentejo.

Intimamente ligado à narrativa, à cultura e, sobretudo, à vida social no Alentejo, o grande guardião desta tradição, o vinho de talha, apesar de ser um produto milenar que remonta à época romana, é algo que faz ainda parte do dia-a-dia da população transtagana. Sobretudo nas zonas rurais, não é raro avistar-se ânforas de barro. Hoje, tendo caído esta forma de vinificação em desuso, apenas algumas vasilhas flanqueiam as entradas de casas e terrenos alentejanos, adornadas com flores.

Mas este antigo recipiente ainda é – e cada vez mais – usado para fazer vinho de consumo próprio, estando a despertar no mercado uma imensa curiosidade que tem sido observada, de perto, pelas produtoras modernas. “O vinho de talha tem despertado um grande interesse sobretudo nos últimos três a quatro anos. Começámos com o vinho de talha em 2013. Creio, e sinto das viagens que faço e do que temos acompanhado, que é um voltar às origens. É uma procura de destinos históricos, de vermos algo diferenciado e que ofereça não só um vinho em si, mas também uma viagem histórica na perspetiva do que é um terroir e uma região”, explica Pedro Ribeiro, diretor geral e enólogo da Herdade do Rocim.

De castas tradicionais são feitos os vinhos de talha na adega onde a intervenção enológica é quase inexistente, como manda a tradição. Afinal, a Herdade do Rocim faz vinho de talha há mais de 200 anos. “Esta tradição foi sendo mantida. Era vendido a garrafão aos locais e tinha fama de ser um bom vinho de talha”, acrescenta o enólogo.

José Miguel Almeida, presidente da Adega Cooperativa Vidigueira, Cuba e Alvito, apresenta uma justificação diferente para este entrar na moda dos vinhos de talha. “Estava-se mesmo a ver que mais cedo ou mais tarde os vinhos de talha tinham que saltar para as luzes da ribalta. Aqui há um papel fundamental da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), quando, em 2010, assumiu que ia certificar a origem dos vinhos de talha, constituindo-a como uma das classes do vinho DOC Alentejo. Este era o passo que faltava. O grande ‘boom’ acontece por ‘culpa’ desta entidade, que também, além de ter aprovado esse diploma, desencadeou outras ações, nomeadamente o filme promocional sobre os vinhos de talha e o convite a Paul White, para assistir ao 10.º Simpósio de Vitivinicultura do Alentejo, em Évora, e que afirmou que este vinho era um tesouro”, declara o responsável. “Estamos numa fase de grande crescimento. Temos excelente produtores tecnológicos que estão agora a trabalhar talhas, o que é fundamental porque vão utilizar os seus circuitos comerciais. É uma época interessante para o crescimento dos vinhos de talha. A única coisa que é preciso fazer é continuar a garantir a genuinidade, a tipicidade e a origem dos vinhos de talha, porque, como em tudo, os perigos da massificação vêm acompanhados dos perigos da descaracterização”.

Produto de nicho
A José Maria da Fonseca é, das três adegas visitadas, a que possui a maior coleção de talhas. A adega José de Sousa, no centro de Reguengos de Monsaraz, está equipada com 114 ânforas de barro, colocadas abaixo do nível do solo, para que o ambiente durante a vinificação seja o mais fresco possível e com menos oxigénio, onde é realizado o método de fermentação ancestral.

Existente desde 1878 e adquirida pela empresa em 1986, esta adega é a concretização de um sonho antigo de poder produzir vinho no Alentejo utilizando técnicas tradicionais de vinificação, mas também conta com uma adega moderna, com 44 tanques de inox e toda a tecnologia indispensável para a vinificação de tintos e brancos. “Recriámos o que já estava criado”, afirma Domingos Soares Franco, diretor de enologia e vice-presidente da José Maria da Fonseca. “Quando comprámos a adega, havia umas 20 talhas. Quando começámos a comprá-las, ninguém percebeu qual era a nossa intenção, e ainda bem, porque conseguimos comprar perto de 120, mas perdemos seis que se foram partindo no processo”.

O processo, esse, é similar nas três empresas. Em traços gerais, as uvas vêm de castas autóctones e, hoje, quase desconhecidas. Roupeiro, Manteúdo, Diagalves, Larião, Perrum, Rabo-de-Ovelha, Moreto e Tinta Grossa, assim como a mais reconhecível Antão Vaz, são vindimadas e esmagadas. As uvas são colocadas dentro das talhas de barro e a fermentação ocorre naturalmente. É durante a fermentação que as películas das uvas sobem à superfície, formando uma capa sólida, sendo necessário mexer o produto com um rodo de madeira e obrigar o mosto a mergulhar. Essas massas assentam no fundo no final do processo. Perto da base da talha, coloca-se uma vara ou uma torneira num orifício pré-existente. O vinho atravessa o filtro formado pelas massas e, após algum tempo, sai puro e límpido, pronto a ser consumido.

Em Reguengos de Monsaraz, com a José Maria da Fonseca, encontra-se uma adega que usa algum engaço para contribuir com maior arejamento das massas e permitir um efeito de filtração. “30% do engaço vai para dentro das talhas. Os outros 70% são fermentados à parte com um bocado de mosto. As talhas são cheias até quatro quintos, começam a fermentar e baixamos a manta quatro ou cinco vezes por dia. A talha é regada quatro a cinco vezes por dia para manter a temperatura de fermentação. Após a fermentação, demora quatro semanas até a manta cair. Há um batoque por baixo, que é retirado, e mete-se uma cana. Os primeiros 20 litros saem turvos porque estão no meio do engaço e das películas. Desse vinho, parte vai para envelhecer em talhas por 16 meses e outra parte vai para cascos, que são de castanho e não carvalho, que é o que era usado na altura”, conta Domingos Soares Franco.

Já em Cuba é comum usar-se a totalidade do engaço. “Produzimos o vinho de talha a partir de castas autóctones – castas já muito bem adaptadas à região – provenientes de vinhas em regime de sequeiro, ou seja, vinhas não regadas, e efetivamente são castas que estão com tendência a desaparecer a nível nacional, onde têm pouca expressão. Mas, até aqui no próprio Alentejo, na sua zona de origem, essas castas estão a desaparecer. Quanto ao processo em si, fazemos a vindima manual. Estas vinhas centenárias não são vindimáveis mecanicamente. Por exemplo, este ano percorremos seis hectares de vinhas históricas e só recolhemos quatro mil quilogramas de uva. Estes são dados absolutamente impressionantes e que demonstram a baixa produtividade”, explica José Miguel Almeida.

É por esta dificuldade de se replicar este produto num ambiente de produção mais massiva que ainda se veem pequenas quantidades de vinho de talha –apenas um produto tradicional ou familiar, feito por pequenos produtores – a entrar no mercado. Apesar disso, existem cada vez mais produtores interessados na sua produção e comercialização, tornando os vinhos de talha cada vez mais visíveis. “Não tenho dúvida que os vinhos de talha irão ser vinhos de nicho. Apresentam volumes pequenos, até porque não conseguimos reproduzir isto numa escala industrial, é um produto bastante artesanal, não dá para reproduzir em grandes volumes. Além disso, também não julgo que o perfil dos vinhos seja muito consensual. Esta forma de vinificação é muito específica. Ou seja, o perfil que imprime aos vinhos é distinto e muito local. Quando se prova um vinho de talha, provavelmente a última coisa que lembra é um ‘blockbuster’ do Alentejo, e por várias razões: pelo método em si, que confere alguma mineralidade, pelas uvas que utilizamos, que são uvas de vinha velha”, argumenta o enólogo da Herdade do Rocim, que exporta mais de 95% da sua produção de vinho de talha, sobretudo para mercados mais desenvolvidos e mais maduros. “Mas vão ser o estandarte de uma região com muita história na produção de vinhos. Naturalmente, não vão ser os vinhos de talha o motor da economia dos vinhos do Alentejo, mas sem dúvida que terão um papel importante como marco histórico e como uma perspetiva de futuro para os vinhos do Alentejo. O vinho de talha vai ser sempre um vinho de nicho, mas vai ser um vinho que está a trazer atenção de todos os mercados”.

Dia de S. Martinho
O Dia de S. Martinho – o dia da “abertura das talhas” – é o apogeu da milenar relação entre o Alentejo e o vinho de talha. Afinal, esta é uma atividade que foi sobrevivendo graças às tabernas ou restaurantes do Alentejo, onde o saber passou de geração em geração. Servido à mesa, ou vendido a garrafão, estes estabelecimentos ainda mantêm muito presente esta tradição de vinificar para consumir em casa.

As massas vínicas são mantidas dentro da talha até essa data, para que o vinho possa ser devidamente certificado como DOC Alentejo. “A partir do Dia de S. Martinho, o produtor pode optar por tirar logo o vinho ou reservar engarrafado. O vinho dentro da talha não aguenta, porque a talha é aberta, havendo o risco de oxidação. Ainda não tenho grande experiência da capacidade de envelhecimento dos vinhos de talha, o que sei é que o meu vinho de 2013 está numa fase extraordinária. Acredito que estes vinhos têm capacidade de envelhecimento”, diz Pedro Ribeiro.

Mas o vinho da talha, que pode ser branco, tinto ou uma mistura de uvas brancas e tintas, frequentemente (e rapidamente) se esgota, sendo quase todo consumido entre novembro e dezembro, nas vilas e aldeias. Serve de acompanhamento para marmelos da época, nozes, castanhas e uma generalidade de petiscos em que a gastronomia alentejana é rica.

Este artigo foi publicado na edição n.º 48 da Grande Consumo.

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