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Retalho moderno cada vez mais tradicional

A proximidade está na ordem do dia. Um canal que, em determinada época, pareceu votado ao desaparecimento, com o aparecimento em força dos supers, hipers e, mais tarde, do comércio eletrónico, com o retalho moderno a reger-se pela premissa de que quanto maior melhor, nos dias de hoje, volta a fazer novamente, e mais do que nunca, sentido. Com o reajustamento nos hábitos dos consumidores, por via da crise, as compras passaram a ser feitas numa perspetiva de curto prazo, muitas vezes para consumo no próprio dia, o que evita a deslocação às grandes superfícies comerciais. O comércio de proximidade ganhou um novo fôlego, bem patente pela aposta dos grandes operadores de retalho neste canal, recentemente reforçada com a entrada da Auchan no negócio das mercadorias de bairro.

Historicamente, Portugal sempre teve uma elevada expressão de lojas de proximidade. Por um lado, os países do sul da Europa têm tradicionalmente um grande número de pontos de venda de pequena e média dimensão que, no caso português, recebeu o incentivo de algumas circunstâncias históricas particulares, como o regresso de muitos cidadãos das antigas colónias africanas e dos seus projetos de emigração, assim como o encerramento de grandes empreendimentos industriais, que deixaram muitos sem emprego e que viram na abertura destes negócios uma oportunidade.

Mas seguiram-se, em 2004 e 2009, a desregulamentação dos licenciamentos comerciais, que potenciou a acelerada expansão das grandes superfícies e centros comerciais. De facto, durante muitos anos, o retalho moderno regeu-se pela premissa de que quanto maior melhor, com os formatos de grande dimensão a serem privilegiados pelas empresas de distribuição pelas suas economias de escala na diminuição dos custos e consequente aumento da rentabilidade das vendas e pelos consumidores pela possibilidade de aceder a um sortido muito mais alargado de produtos a melhores preços, permitindo concentrar as compras num só local.

A situação agravou-se a partir de 2010, pela perda de poder de compra por parte dos consumidores, fruto da crise e do obrigatório programa de reajustamento, contribuindo para o encerramento de muitos negócios. Mas, nos últimos anos, o comércio de proximidade ressurgiu e mais dinâmico. Segundo dados da Nielsen, este canal inverteu a tendência negativa que vinha a caracterizar a sua atividade ao longo dos últimos sete exercícios e, em 2015, regressou aos crescimentos, mais concretamente de 2,8%. Evolução consolidada em 2016 e neste arranque de 2017, com o período da Páscoa a mostrar este canal como o mais dinâmico de todos, com um crescimento de 5,6%, bem acima da média do mercado dos bens de grande consumo, situada nos 3,2%. “O comércio de proximidade veio responder a várias vertentes da atualidade. Por um lado, o envelhecimento da população leva a que existam problemas de mobilidade. Simultaneamente, existem custos de transporte cada vez mais altos e também as dificuldades de poder de compra levaram os consumidores a fazer compras mais curtas, mas com maior frequência, o que veio valorizar os conceitos de proximidade. Nalgumas zonas, junta-se o contributo do turismo”, analisa João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP).

O facto de, no nosso país, tendencialmente ambos os membros do casal trabalharem e das novas gerações não estarem predispostas a ocupar os seus tempos livres, e designadamente os fins de semana, a fazer compras veio contribuir para este novo impulso dado ao comércio de proximidade. Hoje, os “shoppers” querem conveniência, rapidez e produtos frescos e de qualidade. O preço não é o fator mais importante na hora de se decidir o local onde se fazem as compras, uma vez que, segundo o estudo “Global Retail Growth Strategies” da Nielsen, o valor percecionado não decorre do preço. Os consumidores apreciam mais a qualidade/frescura dos produtos (57%), a localização conveniente das lojas (56%) e a disponibilidade do produto em stock (54%) do que, propriamente, o preço baixo.

O aumento do ritmo de vida dos portugueses, conjugado com o desejo de equilíbrio entre a vida profissional e pessoal (a sua primeira preocupação, segundo o Índice de Confiança Nielsen), faz com que exista uma maior procura pela conveniência. Ao que acresce a crescente urbanização. As Nações Unidas projetam que, em 2050, cerca de dois terços da população mundial vivam em áreas urbanas. Em 2014, as cidades já acomodavam 54% da população mundial.

Expansão
Fenómenos que têm favorecido o comércio de proximidade, hoje no radar dos mesmos grandes operadores cuja acelerada expansão quase determinou o seu desaparecimento. A otimização dos processos na cadeia de valor tornou possível que se atingissem níveis de rentabilidade das vendas iguais, ou até mais elevados, com lojas mais pequenas, abrindo caminho à expansão dos pequenos formatos, seja via comerciantes independentes, seja via dos próprios grandes operadores que cada vez mais apostam neste formato.

Recentemente, ficou a saber-se da abertura de duas lojas My Auchan no centro de Lisboa, que marcaram a entrada do grupo de retalho francês naquilo que denomina de ultra proximidade. “A aposta numa insígnia de retalho de proximidade deve-se, fundamentalmente, ao facto da Auchan Retail Portugal entender ter chegado a altura para alargar a sua presença no centro das cidades, estar mais perto dos consumidores e, por via disso, responder de uma forma mais eficaz às suas necessidades e expectativas. Trata-se de uma aposta pensada, estruturada, com um conceito vencedor, dotado de elementos de diferenciação que nos tornam únicos com este tipo de lojas”, diz Rui de Carvalho, diretor responsável Ultra Proximidade.

O objetivo é abrir seis lojas até ao final do ano, fruto de um investimento de seis milhões de euros. My Auchan são lojas de bairro que se diferenciam “pela oferta, pela comodidade e conveniência, pelo preço e pela digitalização”. Assumem-se como lojas urbanas, sem balcão de acolhimento e com uma dimensão que pode variar entre os 200 e os 500 metros quadrados. A primeira loja, localizada na Rua Pascoal de Melo, ocupa uma área de 430 metros quadrados e oferece três zonas distintas: mercado, snacking (zona de refeições rápidas na loja) e produtos de grande consumo, com uma forte aposta nos produtos refrigerados, biológicos e dietética. A segunda, localizada na Avenida João XXI, conta com uma área de 380 metros onde se aposta na mesma oferta. “Os frescos, os biológicos e os dietéticos são os produtos estrela das lojas My Auchan”, confirma Rui de Carvalho. “Levámos a cabo um estudo para identificar o perfil e os hábitos de consumo dos habitantes nos bairros onde implantámos as nossas lojas e selecionámos a melhor oferta para responder a essas necessidades”.

Estas lojas assumem-se como lojas de bairro, totalmente em livre serviço e com o objetivo de oferecer aos clientes um processo de compra completo num menor espaço de tempo. Dependendo da zona, o perfil do cliente varia. “Numas zonas, um cliente mais idoso, noutras, um cliente mais jovem, por vezes, um agregado familiar mais alargado. Aqui fazem-se compras do dia e não as compras do mês que se fazem num hipermercado. Os clientes My Auchan sabem que basta descer as escadas para comprarem aquele produto que lhes faz falta no momento”.

Mas este fenómeno não é novo. Esta tem sido uma das vias de crescimento dos maiores grupos de distribuição, nomeadamente a Sonae e a Jerónimo Martins, com as suas insígnias Meu Super e Amanhecer, ambas lançadas em 2011.

No último ano, das 103 lojas inauguradas pela Sonae, 77 foram lojas Meu Super. “O Meu Super, em seis anos, já contabiliza mais de 260 lojas em todo o país, o que representa mais de mil postos de trabalho, sendo um sucesso ao nível da criação e manutenção de emprego em Portugal”, detalha António Filipe, diretor geral da insígnia de proximidade da Sonae MC.

Ao contrário da My Auchan, em que as lojas são propriedade da Auchan Retail, o Meu Super funciona em modelo de franquia e está disponível tanto para empresários que pretendam abrir lojas de raiz como para transformação ou “upgrade” de lojas já existentes e em funcionamento. “Os parceiros da Sonae MC na rede Meu Super beneficiam de um conjunto alargado de vantagens que lhes confere competitividade no mercado nacional. A Sonae garante o apoio em todas as fases do processo, desde a análise de viabilidade à definição de ‘layout’ e imagem e seleção de equipamento ou escolha da gama”.

É por este motivo que António Filipe considera que este formato conduz à revitalização do comércio tradicional, mercado que, pelas suas contas, vale mais de 690 milhões de euros em Portugal e com perspetivas para continuar a crescer. “Os portugueses são, por sistema, rotineiros, gostam de passar no supermercado da sua rua, ao final do dia, para as compras, privilegiam os serviços onde são tratados pelo nome e onde o próprio lojista já conhece as suas preferências e antecipa as suas necessidades”, sublinha o diretor geral do Meu Super. “O consumidor português quer a conveniência que advém da proximidade da loja, da variedade do sortido e do preço ajustado que o retalho de proximidade proporciona”.

Pela análise feita através do cartão Continente, quando vão a uma loja Meu Super, os clientes procuram iogurtes, charcutaria, refeições congeladas e bolachas. As mais de 260 lojas estão presentes em todo o país, assegurando desta forma uma cobertura completa do território nacional, mas com maior enfoque nas zonas urbanas. A localização em zonas de grande fluxo pedonal ou fortemente habitadas é fator chave para um potencial de vendas elevado. Frescos e perecíveis são os maiores dinamizadores do tráfego destas lojas, nomeadamente os produtos da chamada área viva, congelados e lacticínios. “Podemos afirmar que os consumidores do Meu Super procuram as nossas lojas e mantêm-se fidelizados à marca, pela proximidade de casa, por hábito de rotina do dia-a-dia e também pela simpatia do atendimento. Em média, um cliente fidelizado gasta 10 euros numa única compra”.

Marcas próprias
Para além de permitirem aos grandes operadores estar presentes num canal em crescimento, e que lhes permite agarrar novos tipos de consumidores, estas lojas de proximidade são mais uma via para a disseminação dos seus produtos de marca própria. Os produtos da marca Amanhecer, que incide em categorias alimentares, são os mais procurados nas mercearias da Jerónimo Martins, por “apresentarem padrões de qualidade elevados e preços mais competitivos”. A quota das marcas próprias nas lojas Amanhecer representa atualmente mais de 30% das vendas o que, de acordo com fonte da empresa, reflete que os clientes reconhecem e valorizam a proposta de valor. “A par dos produtos de marca própria, os frescos constituem uma área em que os nossos parceiros beneficiam da nossa ‘expertise’, sendo muitas vezes valorizados pelos clientes das mercearias Amanhecer e, consequentemente, geradores de tráfego”.

Mas a gestão do sortido varia de loja para loja em função do perfil dos seus clientes. Por exemplo, a mercearia Amanhecer do Carvoeiro tem um perfil mais turístico e apresenta produtos que são muito procurados por estrangeiros. Já a loja mais recente, em Telheiras, tem uma área de garrafeira alargada.

A cadeia Amanhecer inclui 292 mercearias que são totalmente detidas pelos seus proprietários, que mantêm a autonomia na gestão do seu negócio. O volume de negócios da rede tem vindo a crescer por via da abertura de novas lojas, mas também “porque os retalhistas que integraram esta rede têm conseguido fazer crescer as suas vendas, quer em volume, quer em rentabilidade, e acima do crescimento do segmento do retalho tradicional”.

O número de lojas aderentes a estes conceitos tem vindo a aumentar de forma significativa, mas ainda bem distantes das 780 lojas aderentes à rede Aqui É Fresco, que Carla Esteves, gestora da rede, não tem problemas em qualificar como a maior a nível nacional. Este projeto iniciou atividade em 2012, a partir da vontade de um conjunto de 13 empresas grossistas associadas na central Unimark, no sentido de responder aos desafios que o crescimento da concentração do retalho em Portugal colocava aos comerciantes independentes.  “Desde 2012 que, todos os anos, o saldo é positivo. Mesmo com o aparecimento de novas insígnias, crescemos todos os anos”.

Com uma abrangência muito ampla a nível nacional, e especial incidência a norte do Mondego, as lojas Aqui É Fresco são, de acordo com a gestora, de muita proximidade e direcionadas para a compra diária. E que se batem “taco a taco” com as insígnias principais em termos de preço. “Já conseguimos a competitividade. Falta-nos a notoriedade. Daí o foco em chegar ao final do ano com, pelo menos, 100 lojas de nível II, ou seja, com imagem Aqui É Fresco. Quanto maior for a comunicação nas lojas, maiores serão as vendas”.

No entender de Carla Esteves, o consumidor está saturado de médios e grandes formatos, o que abre espaço para um desenvolvimento ainda maior do chamado canal tradicional. “As lojas de proximidade estão a vender mais 6% que a média”, sublinha. Os restantes operadores concordam com o potencial de crescimento deste canal, onde continuarão a apostar, não só pelo menor investimento associado, como pela maior rapidez em abrir pontos de venda, mas discordam quanto à saturação face aos outros formatos. “Em Portugal, há espaço de crescimento para os dois tipos de mercados, o de proximidade e o de médio e grandes formatos. Além do consumidor que faz compras diárias ou semanais, existe também o que concentra as compras numa única vez por mês e esse consumidor procura as grandes superfícies”, diz António Filipe.

Pode-se então esperar novos crescimentos para o canal de proximidade, de forma estruturada e com foco no cliente, antecipando as suas necessidades. Estes conceitos foram bem sucedidos porque souberam acompanhar a evolução dos hábitos de consumo, adequando o sortido e os serviços, e nem o advento do comércio eletrónico no retalho alimentar parece atrapalhar os planos de expansão destes operadores.

Este artigo foi publicado na edição 45 da Grande Consumo.

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