Marca Portugal, em estado de coma identitário?

Carlos Coelho, especialista em marcas desde 1985; presidente da Ivity Brand Corp
Carlos Coelho, especialista em marcas desde 1985; presidente da Ivity Brand Corp

O contributo das marcas para o desenvolvimento de um país é indiscutível. Uma marca-país valiosa depende tanto da força dos seus pilares identitários, quanto da energia das suas marcas comerciais, em todos os sectores de atividade.

Comecei a trabalhar em marcas em 1985, e continuo a dedicar a minha vida profissional à prática e ao estudo das marcas enquanto agregadores sociais e motores da economia. Sou profundamente “marquista” e tenho pelas marcas uma ligação quase amorosa, na medida em que acredito que são os sonhos do homem perpetuados na economia. Ao longo da minha carreira, fui-me interessando, também, pelas marcas coletivas e territoriais. Neste percurso de entendimento sobre o equilíbrio que é necessário conseguir entre o interesse privado e o interesse público, fui desenvolvendo um nacionalismo ativista, no sentido de que não me faz sentido que a modernização tenha de ser o enfraquecimento do todo, em benefício de uma só parte.

Dito isto, para que fiquem claras as minhas convicções, gostaria de trazer aqui uma descrição livre de um episódio da série humorística brasileira Porta dos Fundos. Chama-se Rio 2025 e é uma sátira sobre o comportamento das marcas e o poder excessivo que poderão exercer no domínio público, caso não tenhamos a noção do ridículo. Podem ver o episódio completo aqui:

Um doente acorda de um coma de 10 anos e pergunta onde está.

A enfermeira, simpaticamente responde: Carrefour!

O doente, incrédulo, pergunta: Mas estou num supermercado?

Ao que a enfermeira responde: O Hospital Miguel Couto foi comprado pela rede Carrefour.

O doente continua: E ali, é a Lagoa Rodrigo de Freitas?

Não! – responde a enfermeira. É a Lagoa Kuat, que está agora cheia de refrigerante e ficou lindo aquele amarelão assim combinando com o verde do Cristo Jequiti!

A Jequiti (cosmética) comprou o Corcovado? – perguntou o doente.

Não, só comprou a estátua! O morro foi comprado pela telefónica, agora é o Corcovivo e é todo roxo – respondeu a enfermeira.

Doente: Está tudo diferente!

Enfermeira: Que nada, está tudo igual, a mesma coisa, toda a semana tem jogo no Fordmaracanã. Inclusive, esse Oidomingo tem um clássico: ClaroFla vezes Flutim. 

Doente: Não sobrou nada com o mesmo nome?

Enfermeira: Sobrou sim, o Pão de Açúcar.

Ufa – inspira o doente. O Pão de Açúcar não foi comprado?

Foi sim, pelo Pão de Açúcar, e manteve o nome.

Venderam o Rio de Janeiro inteiro? – perguntou o doente.

Itau! – afirmou a enfermeira.

O Rio de Janeiro se chama Itau? – perguntou, incrédulo, o doente.

Sim! O prefeito Eduardo Pais… Eduardo Odebrecht!

Doente: A empreiteira comprou o prefeito?

Enfermeira: O senhor está em coma há 10 ou há 50 anos?

Vender o nome é um pouco demais! – afirmou o doente, ao que a enfermeira respondeu: Então? Senhor Bradesco!

 

Se não fosse irónico, seria trágico, ou vice-versa

Se não fosse irónico, seria trágico, ou vice-versa. Se fosse um episódio dos Simpsons, que têm previsto muitas das aberrações que temos vivido no mundo, seria ainda mais grave. Sendo o Porta dos Fundos, que muito admiro, tenho ainda uma esperança de que este caminho “natural” das marcas, de se apropriarem do dicionário do quotidiano, seja de algum modo travado pelo bom senso ou pela legislação dos países.

Sempre fiquei muito divido neste exercício de violação verbal dos patrimónios edificados. O caso do Pavilhão Atlântico, em Lisboa, mostra a vulnerabilidade que este tipo de prática gera. Em menos de 20 anos de existência, já mudou três vezes de nome: Pavilhão Atlântico, Meo Arena, Altice Arena e talvez não fique por aqui.

Já no Porto, a situação é ainda mais delicada. O maravilhoso Palácio de Cristal foi transformado e dedicado à nossa querida campeã Rosa, Pavilhão Rosa Mota, até que foi preciso financiamento e nasceu a Super Bock Arena. Candelabros de cristal, arquitetura Art Deco e janelas com vitrais fazem do McDonald’s dos Aliados o mais belo do mundo. Teatros (Éden) que viram Hard Rock Cafés, ou bancos (Tivoli) BBVA. Outros exemplos, de outras naturezas mais ou menos subtis, poderia aqui trazer para que possamos refletir sobre o que as marcas estão a fazer ao património do país e o que queremos do nosso futuro coletivo.

Nós, que somos especialistas em marcas e marketeers, deveríamos assumir a responsabilidade de alinhar os interesses das marcas que representamos com o bem maior da nossa marca coletiva de que somos feitos e que, ainda, se chama só Portugal!

Mas é também de um outro Palácio de Cristal que gostaria de vos falar. Este é em Lisboa e fica na Avenida Alexandre Herculano 66, junto ao Largo do Rato. Trata-se do Auto Palace Avenida. É um edifício de 1907, da autoria do famoso engenheiro Gustave Eiffel. É um exemplo notável de arquitetura de ferro em Portugal. Um projeto da Sociedade Portuguesa de Automóveis, concretizado pelos construtores Veillar&Touzet. Este magnífico edifício conjuga o ferro com uma decorativa neoclássica na fachada: Arte Nova nos vitrais e painéis de azulejos com logótipo Auto Palace.

Sempre que ali passo, sonho que, um dia, aquele espaço possa ser engravidado de um novo sentido e que este ex-libris arquitetónico de Lisboa tenha uma utilização que valorize a sua história. Em vez de ser uma garagem de outros tempos, se transforme num epicentro cultural que reúna, por exemplo, as artesanias nacionais, que são os tesouros vivos da nossa identidade e que, aos poucos, fruto do abandono social e comercial, estão em vias de extinção.

Estou certo de que um espaço desta natureza, e com este tipo conteúdo, seria um importante ponto de interesse turístico de Lisboa e, com isso, ser um gerador de receitas e visibilidade para o país inteiro, tendo um decisivo contributo para inverter este ciclo de empobrecimento cultural das nossas raízes.

Passei, há pouco mais de uma semana, por este local de, repito, manifesto e registado interesse público e vi que tinha entrado para obras. Fiquei por momentos cheio de esperança, será que teremos aqui um exemplo para o país inteiro? Um exemplo daqueles que o Papa Francisco não se cansou de enunciar? Um exemplo sem medo de existir e para bem de todos? A minha curiosidade terminou imediatamente quando vi a placa de obra e li a marca Continente!

 

Economia tomou conta da poesia

A economia tomou conta da poesia e escreve modernidade com desconsideração e inoportunidade: uma abertura de um Mercadona é notícia de telejornal. Estou mesmo desapontado e revoltado com o poder dominante que as marcas podem exercer numa sociedade que precisa urgentemente de ser alimentada com outro tipo de superfícies. Um supermercado num local classificado de interesse público parece-me um crime moral, mesmo que legal, cometido por uma marca – Continente – que é tão querida dos portugueses, mas que neste caso não agiu como marca-cidadã!

Não façamos do grande consumo a extinção dos valores que temos de preservar e a morte das particularidades que nos definem enquanto povo, permitindo que as marcas comerciais tomem conta da paisagem social das nossas cidades e das nossas vidas.

Lembremo-nos que o doente da rábula do Porta dos Fundos somos nós. Vivemos em Portugal uma espécie de estado de coma, no que diz respeito ao alinhamento da nossa identidade com o desenvolvimento e com o futuro. A modernização não pode ser o enterro do passado. Portugal não poder ser uma grande superfície comercial que, em nome da proximidade da distribuição, se anule em termos identitários. Importa refletir sobre o papel das marcas e o limite até ao qual é ou não legítimo que se apropriem de locais de interesse público, em função dos seus interesses particulares. Temos de enfrentar o desafio de pensar seriamente no que queremos ser e como nos queremos chamar, quando acordarmos daqui a 10 anos!

Este artigo foi publicado na edição N.º 82 da Grande Consumo

 

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