in ,

“Antes de se falar desta quarta revolução industrial, já tínhamos conceitos aplicados em várias áreas”

Na fábrica da Racentro, há já 10 anos que está tudo automatizado. Basta carregar num botão para se debitar três toneladas de ração por minuto. O assunto está na ordem do dia e na agenda atual do Governo, mas no Grupo Lusiaves, ainda antes de se falar de Indústria 4.0, já havia conceitos aplicados em várias áreas. Empresa líder do sector avícola a nível nacional, que ambiciona ser uma referência mundial e que quer liderar pela inovação e boas-práticas que aporta. De tradicional tem pouco esta ilustre representante do sector agroalimentar português, que vai investir, nos próximos dois anos, mais cinco milhões de euros em inovação. O objetivo, diz o administrador e CIO do Grupo Lusiaves, Paulo Gaspar, é tão somente cumprir com o mantra do presidente Avelino Gaspar: fazer o dobro, em metade do tempo e com metade do esforço.

Grande Consumo – O que leva uma empresa tradicional do sector agroalimentar a investir cinco milhões de euros, nos próximos dois anos, em inovação? Concretamente, como se vai materializar este investimento?
Paulo Gaspar –
Como se gastam cinco milhões de euros? (risos) É simples: o software custa dinheiro, mantê-lo também, assim como a infraestrutura onde esse software corre e a formação que damos aos colaboradores sobre o mesmo.
É em todos estes aspetos que o investimento de cinco milhões de euros se vai materializar, com uma grande parte a ser direcionado para a nossa infraestrutura de base, ou seja, redes e telecomunicações. Outra área que vai ser alvo de forte investimento é o software propriamente dito, designadamente as soluções customizadas. Recentemente, e é a chave de toda a transformação que estamos a fazer, apostámos numa nova plataforma de integração, que nos vai permitir juntar todos os softwares e pô-los a “falar” uns com os outros. Vamos capitalizar muito nisso para, depois, desenvolver soluções à medida que são as que, no fundo, nos trazem diferenciação.
Ainda outra parte importante desse investimento vai ser feito em pessoas. Vamos reforçar a equipa de tecnologias da informação, que já mais do que duplicou nestes últimos meses e que temos vindo, consecutivamente, a ampliar, à medida que fazemos mais projetos.

GC – Em que patamar está a Lusiaves ao nível da chamada Indústria 4.0? Quantas fábricas estão totalmente automatizadas?
PG –
A Lusiaves é um grupo muito grande. Estamos em toda a fileira avícola, desde a plantação do milho até à venda direta, em algumas lojas próprias, ao consumidor final. Pelo meio temos as fábricas de rações, os matadouros, os pavilhões onde criamos os frangos, a fábrica de incubação, a unidade de transformação de subprodutos, etc. São muitas atividades, umas mais automatizadas do que outras, com máquinas e linhas de produção que são mais ou menos fáceis de interligar, pelo que estamos em diferentes estágios ao nível da Indústria 4.0. A título de curiosidade, começou-se a falar mais de Internet das Coisas há dois anos, mas a fábrica da Racentro está automatizada há já 10 anos: um colaborador está sentado na sala de controlo, carrega num botão e debita três toneladas de ração por minuto. Está tudo automatizado nesta fábrica que é, tão somente, a mais produz na Península Ibérica.
Antes de se falar desta quarta revolução industrial, já tínhamos conceitos de Indústria 4.0 aplicados em várias áreas de negócio. Para mim, trata-se mais de um desafio de integração e de orquestração de sistemas do que, propriamente, pôr sensores aqui e acolá. Isso já temos, até por obrigação legal. Temos sensores de temperatura em todas as nossas câmaras e matadouros há 20 anos, porque é obrigatório por lei. A “magia” está, de facto, na orquestração e garantir que toda a informação passa de um lado para o outro e, depois, com essa informação toda organizada, saber que tipo de camadas se podem adicionar.

GC – Que projetos têm vindo a ser implementados, para além do realizado em parceria com a Deloitte e o Instituto Politécnico de Leiria relativo às rações?
PG –
Essa foi uma experiência interessante para ver como uma consultora, uma universidade e uma empresa de cariz industrial conseguem colaborar para, num curto espaço de tempo, ter uma solução real e prática para determinado problema. E o problema era que, quando os nossos camiões iam descarregar a ração, não havia uma forma de medir quanto estava a ser alocado a cada pavilhão. Não havia balanças no silo onde se descarrega e o próprio camião não tinha forma de medir, em tempo real, quanto da ração estava a ser descarregada. Nuns era a olho, noutros pelo tempo ou, os mais avançados, inferir o peso através das informações que eram dadas pelo manómetro da suspensão. Para resolver este problema, foi colocada uma válvula no sistema da suspensão dos camiões, ligada a um mini computador, que depois comunica, via wireless, para uma aplicação móvel, permitindo ao motorista saber em tempo real quanto está a ser descarregado. Esse exercício correu muito bem, uma vez que, no espaço de uma semana, tivemos uma solução para o problema apresentado.
Agora, estamos com um grande projeto ao nível logístico, em que estamos a integrar sensores em todos os nossos automóveis e, através de uma plataforma única, monitorizá-los para otimizar toda a logística, que é uma área com um elevado peso na nossa estrutura, uma vez que temos centenas de camiões a circular de norte a sul do país. Esse projeto está em andamento, assim como outro que se prende com a implementação de um ERP único para as nossas mais de 30 empresas, o que nos vai permitir ganhos do ponto de vista administrativo.
Na área dos recursos humanos, vai também arrancar um projeto que tem a ver com a implementação, pioneira em Portugal, do Workplace, que é a plataforma empresarial do Facebook. Fizemos já um teste-piloto com 200 pessoas e com bons resultados. Cerca de 82% das pessoas utilizam diariamente a plataforma, que é um canal de comunicação interno muito eficiente, com chat e posts, tal e qual como no Facebook. Já vemos dinâmicas de equipa a alterarem e projetos a tornarem-se mais céleres e práticos.

GC – A digitalização tem impacto na produtividade e rentabilidade das vendas? Qual a vossa experiência? É um desafio fácil? Quais as principais dificuldades encontradas na implementação destes processos?
PG –
Facilidades, em IT, não existem. São sempre desafios. Quando se começa a ter maior massa crítica, começa a ser um pouco mais fácil.
Implementámos a nossa plataforma de “business inteligence” para as vendas há relativamente pouco tempo. Temos uma força de vendas com cerca de uma centena de elementos, que anda diariamente na rua e que só uma vez por mês tinha dados de performance. Regra geral, estes comerciais andavam todo o mês sem saber se estavam a vender mais ou menos que no mês anterior. Com esta plataforma, passaram a ter acesso, de uma forma muito simples, a resultados que são atualizados ao segundo. O resultado foi, então, um aumento na melhoria da satisfação dos nossos comerciais, que sabem se estão ou não a fazer um bom trabalho e conseguem detetar problemas muito mais cedo. Não é por acaso que tivemos crescimentos de 30% em volume. O acesso à informação ajuda, a produtividade aumenta, assim como a satisfação dos colaboradores.
A principal dificuldade de implementação desta plataforma, em concreto, foi conseguir trazer informação de vários sistemas distintos, congregá-la num só e trabalhá-la de modo relevante.

GC – É público que a Lusiaves vai investir 200 milhões de euros nos próximos cinco anos para aumentar a sua capacidade de produção, disponibilizar novos produtos, integrar novas áreas de negócio e apostar na internacionalização. Estes objetivos seriam possíveis de concretizar se a empresa não se estivesse a preparar ao nível industrial e a apostar na sua desmaterialização?
PG –
Se calhar, até seriam possíveis de alcançar. Mas se me perguntar se seria rentável, provavelmente não. Estamos a fazer um grande percurso e a seguir aquele que é o mantra do nosso presidente: fazer o dobro, em metade do tempo e com metade do esforço. Para o cumprir, a digitalização tem um papel fundamental.
Muito destes 200 milhões de euros de investimento têm que ver com a infraestrutura física que, de facto, necessitamos e com os recursos humanos. Mas há uma boa fatia que é dedicada à digitalização e à formação dos nossos quadros para poderem fazer face a esta nova realidade.

GC – São investimentos que permitem reforçar a liderança de mercado em Portugal? Pode-se dizer que a Lusiaves é uma empresa líder não só pela quota de mercado que possui, mas também pela inovação e boas-práticas que traz ao sector?
PG –
Eu quero acreditar que sim. O meu trabalho é garantir precisamente isso. Queremos liderar pela inovação e boas-práticas não só a nível nacional, mas europeu e mundial. A ambição não termina por sermos os melhores na nossa indústria em Portugal, nem na Europa. Queremos ser a referência mundial no sector. É esse o caminho que julgamos estar a percorrer.

GC – A inovação tecnológica na área da incubação colocou a Lusiaves como uma das cinco melhores empresas do sector ao nível europeu. Que inovação é esta? Que ganhos permitiu?
PG –
É uma inovação que tem que ver com toda a linha de incubação e que permite, no fundo, detetar defeitos nos ovos ou se têm ou não pintos no seu interior, antes de passarem por um processo de incubação que ainda demora alguns dias. Permite-nos não só obter grandes ganhos de eficiência, como também, por exemplo, reduzir contaminações. Numa fábrica que processa mais de dois milhões de ovos por semana, qualquer pequena percentagem de melhoria tem um impacto relevante no negócio. Se conseguir reduzir 2% dos ovos que não vão gerar pintos, no final, vou conseguir um ganho de produção de 2% a 3%.

GC – Como é possível gerir a inovação e implementar um projeto de Indústria 4.0 numa empresa que controla toda a cadeia de valor do negócio?
PG –
Facilita todo o processo. Ao controlar toda a cadeia de valor do negócio, podemos gerir informaticamente todo o processo, de forma integrada, desde o campo até ao prato do consumidor.
A nossa ambição é, num futuro próximo, conseguir transparecer isso para o próprio consumidor para que, de uma forma muito fácil, consiga ver todo o percurso do frango que está a comer: de onde veio a ração que o alimentou, onde foi criado, quem foram os pais, etc. É uma prova de total transparência que comprova toda a segurança dos nossos produtos.

GC – Que novos modelos de negócio estão ou podem vir a ser desenvolvidos com a aplicação de tecnologias da Indústria 4.0?
PG –
Há muitos e internamente temos feitos alguns “brainstormings” para ver no que poderá sair de toda esta digitalização. Temos consciência que podemos transformar o Grupo Lusiaves numa plataforma para outros negócios também poderem fazer o seu negócio. Por exemplo, temos uma capacidade logística brutal. Podemos criar uma aplicação de tipo Uber, que seja disponibilizada em toda a nossa plataforma logística e que possa ser utilizada, de forma automática, por qualquer empresário. Um pouco semelhança do que fazem os CTT na validação de moradas para outros sistemas.
Por ora, estamos focados em toda esta transformação interna que possa um dia possibilitar esses novos modelos de negócio.


GC – O Grupo Lusiaves tem apostado fortemente na digitalização do negócio e na automatização dos processos industriais, contudo, isso não tem levado a um desinvestimento nos recursos humanos. É um mito que a automatização das fábricas vai resultar num aumento do desemprego?
PG –
Existe um grande debate sobre esta questão. Na minha opinião, a automatização das fábricas não vai levar a um maior nível do desemprego. Se olharmos para as estatísticas, embora alguns empregos possam estar a ser “destruídos” pelas tecnologias, há muitos mais que estão a ser criados. E com a diferença de que os que estão a ser criados são empregos de valor acrescentado, mais qualificados, que exigem um maior grau de formação.
As pessoas vão ter que mudar e se adaptar à nova realidade. E acredito que, pelo menos no nosso grupo, estão já a fazer essa mudança. Não acredito que a Indústria 4.0 vá aumentar a taxa de desemprego, mas sim obrigar as pessoas a ganhar novas competências para dar resposta a novas necessidades.

GC – É absolutamente necessário ao sector agroalimentar português apostar na sua digitalização? A sua competitividade depende disso?
PG –
Claramente que sim. Se nos queremos manter competitivos, temos de apostar neste sentido, porque é o que está a fazer a concorrência. O facto de termos a mão-de-obra um pouco mais barata que outros países não chega. Mais dia menos dia, esse custo vai aumentar, uma vez que os portugueses não querem ter um nível de vida pior que os espanhóis ou os franceses. A longo prazo, o custo da mão-de-obra há-de equilibrar e, quando isso acontecer, se não tivermos a capacidade de produzir de forma mais automatizada e a um preço mais competitivo, vamos ficar para trás.

GC – Portugal está adiantado ou atrasado na chamada 4.ª Revolução Industrial?
PG –
Podemos olhar para esta questão sob diferentes perspetivas. Do ponto de vista da indústria, algumas estão claramente à frente comparativamente a essas mesmas indústrias noutros países. Veja-se, por exemplo, o sector dos moldes, que está avançadíssimo.
Do ponto de vista tecnológico, Portugal é dos países da Europa melhor preparados ao nível de infraestruturas de telecomunicações. Isso é essencial para todo este movimento. A questão é as empresas tirarem partido disto em seu benefício. Muitas estão a fazê-lo.
Não obstante ainda ter um percurso longo a percorrer, Portugal não está atrasado na chamada 4.ª Revolução Industrial. Estamos a dar os passos certos e o Governo está a fazer o seu papel na promoção da mudança de mentalidades para que as empresas tomem as medidas necessárias neste sentido.

Esta entrevista foi publicada na edição 45 da Grande Consumo.

Sector automóvel é o que mais menções tem nos social media

Grupo DIA lança plataforma digital para startups