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O Japão está a viver a maior crise de abastecimento de arroz em mais de três décadas, num cenário que muitos analistas comparam ao período pós-Fukushima. Em apenas um ano, o valor do arroz subiu cerca de 90%, empurrando os consumidores para marcas mais baratas e obrigando as cadeias de restauração a recorrer a importações excecionais de arroz estrangeiro, algo impensável num país com uma profunda reverência cultural por este alimento.
Segundo a imprensa económica japonesa, o preço médio de uma embalagem de cinco quilogramas de arroz branco ultrapassou os quatro mil ienes (cerca de 26 euros), o que representa quase o dobro do valor habitual. A escassez instalou-se, os consumidores recorrem a compras por impulso e o Governo japonês foi forçado a intervir no mercado.
Tempestade perfeita: clima, turismo e alarmismo político
A crise resulta da combinação de vários fatores. Por um lado, as alterações climáticas afetaram negativamente as colheitas nalgumas regiões-chave, com fenómenos como chuvas intensas e ondas de calor a dificultar a produção em várias províncias.
Por outro, o regresso massivo pós-Covid do turismo internacional ao Japão aumentou significativamente o consumo interno de arroz, sobretudo nos canais de hotelaria e restauração.
Mas foi um alerta do Governo nipónico, em julho de 2024, sobre a possibilidade de um grande terramoto, que recomendava que os cidadãos tivessem reservas alimentares suficientes para, pelo menos, uma semana, que despoletou um comportamento de pânico no retalho e um aumento súbito da procura. Muitos cidadãos acumularam bens essenciais e o arroz foi o primeiro a desaparecer das prateleiras.
A resposta governamental veio com a libertação de 210 mil toneladas de arroz das reservas estratégicas do país, acumuladas desde uma crise semelhante em 1993, e com a imposição de restrições temporárias à exportação de arroz japonês, uma medida que está a gerar críticas junto dos produtores e importadores internacionais.
Produção até subiu, mas ninguém comprou
Em contraste com a perceção pública, a produção de arroz no Japão aumentou ligeiramente em 2024, atingindo 6,79 milhões de toneladas, mais 180 mil toneladas do que em 2023. No entanto, os distribuidores compraram significativamente menos arroz aos agricultores do que no ano anterior, antecipando uma menor procura e pressionando os preços.
Esta leitura errada do mercado levou a uma suboferta artificial e abriu espaço à especulação entre grossistas, que agora acumulam stocks e inflacionam os preços junto do retalho. O Ministério da Agricultura japonês está a investigar práticas de retenção e a preparar incentivos à compra direta a produtores locais.
A escassez de arroz é também reflexo de uma tendência estrutural de abandono da agricultura no Japão. O país tem uma das populações mais envelhecidas do mundo e o número de agricultores ativos tem vindo a cair de forma acentuada. Entre 2000 e 2020, o número de agricultores de arroz caiu mais de 40%, segundo dados do Ministério da Agricultura, Florestas e Pescas do Japão.
Restaurantes substituem arroz japonês por importado
A subida de preços está a ter impacto direto no canal Horeca, levando cadeias de restauração como Matsuya, Yoshinoya ou Colowide a optar por arroz importado, nomeadamente dos Estados Unidos, Tailândia e Paquistão. Esta mudança marca uma rutura cultural relevante, já que o arroz japonês sempre foi símbolo de qualidade e identidade nacional.
A economia do arroz no Japão mantém-se altamente protegida e praticamente isolada do mercado mundial, mas o Governo autorizou a importação de 100 mil toneladas através de um sistema de leilão público. Até aqui, os direitos aduaneiros tornavam o arroz estrangeiro até quatro vezes mais barato, mas não competitivo devido às barreiras alfandegárias (as tarifas de importação podem chegar aos 778%) e às preferências dos consumidores.
Paradoxalmente, o Japão registou um recorde histórico nas exportações de arroz em 2024, atingindo 1,5 biliões de ienes (cerca de 9.500 milhões de euros). O destino principal é o mercado chinês, seguido dos Estados Unidos e de países do sudeste asiático, onde o arroz japonês é altamente valorizado.
Contudo, o consumo interno de arroz continua em queda constante, perdendo cerca de 10 mil toneladas por ano devido à diversificação alimentar, envelhecimento da população e redução da preparação de refeições em casa.