Uma revolução silenciosa: o poder transformador da IA no retalho

IA no Retalho

Silenciosa, mas imparável. A inteligência artificial está a transformar profundamente o sector do retalho em Portugal, deixando de ser apenas uma promessa tecnológica para se tornar uma aliada estratégica na personalização da experiência de compra, na eficiência operacional e na tomada de decisão. Dos algoritmos que ajustam preços em tempo real aos assistentes digitais que conhecem os hábitos dos consumidores melhor do que ninguém, a revolução já está em curso e quem não a acompanhar arrisca-se a ficar para trás.

A inteligência artificial (IA) deixou de ser uma promessa futurista para se tornar uma realidade palpável no sector do retalho. Em Portugal, empresas de diferentes dimensões e segmentos estão a adotar soluções baseadas em IA com o objetivo de otimizar operações, personalizar a experiência do cliente e aumentar a eficiência. Mas se hoje falar em inteligência artificial já não é uma novidade, a verdadeira questão é compreender em que medida está a ser implementada e, sobretudo, de que forma pode beneficiar tanto empresas como consumidores.

Sobre este ponto, João Sanches, head of generative AI & enterprise transformation programs na Capgemini Portugal, tem uma opinião bastante clara: a adoção da IA está a reformular as dinâmicas do sector, em especial nos segmentos de grande consumo, onde a personalização, a eficiência operacional e a agilidade são cruciais. Aliás, vai mais longe ao afirmar que a Capgemini considera a IA generativa (GenAI) uma das forças mais disruptivas e inovadoras em curso, particularmente nas áreas do retalho de moda e dos bens de consumo.

A consultora vê a IA não só como um pilar estratégico da modernização do retalho, mas também como uma das principais vantagens competitivas que ditará as novas regras deste mercado altamente competitivo. “A IA é um motor transversal — desde a logística até à interação com o cliente, onde a integração entre os dados, os algoritmos e o negócio é essencial para obter mais eficiência, inovação e diferenciação na experiência do cliente”, explica João Sanches.

De facto, a IA já não é apenas uma promessa tecnológica distante, sendo hoje um verdadeiro imperativo estratégico, sobretudo no retalho. Desde a personalização de campanhas de marketing até à otimização da gestão de inventário, passando por lojas autónomas e chatbots de apoio ao cliente, a IA está a redesenhar, de forma silenciosa, os bastidores e as montras do retalho global e Portugal, naturalmente, não é exceção.

 

A IA já não é apenas uma promessa tecnológica distante, sendo hoje um verdadeiro imperativo estratégico, sobretudo no retalho. Desde a personalização de campanhas de marketing até à otimização da gestão de inventário, passando por lojas autónomas e chatbots de apoio ao cliente, a IA está a redesenhar, de forma silenciosa, os bastidores e as montras do retalho global e Portugal, naturalmente, não é exceção

 

Segundo a McKinsey, a IA generativa poderá vir a gerar, anualmente, entre 400 mil milhões e 660 mil milhões de dólares (cerca de 370 mil milhões e 610 mil milhões de euros) no sector do retalho, a nível global. Entre os casos de uso mais relevantes encontram-se a criação de conteúdos para e-commerce, as recomendações automatizadas de produtos, a dinamização de centros de contacto e a previsão de procura. Esta maior precisão nas previsões permite às empresas ajustarem-se de forma mais eficaz e ágil às necessidades do mercado e ao comportamento dos consumidores. Para além disso, no que diz respeito aos benefícios da utilização da IA, destaca-se ainda a otimização do inventário e da logística, que “permitirá uma melhor gestão dos recursos, garantindo que os produtos certos estão disponíveis no momento oportuno, sem excessos nem carências”, constata João Sanches.

O especialista acrescenta ainda que promoções e pricing dinâmicos podem ser igualmente integrados com estas tecnologias, proporcionando uma maior flexibilidade na definição de preços em tempo real, ajustados à procura e a outros fatores de mercado — algo que pode impulsionar de forma significativa as vendas.

 

Da teoria à prática

Redução de custos e melhoria de margens são dois dos principais benefícios associados à utilização de IA na cadeia de abastecimento. Estes resultados tornam-se possíveis, por exemplo, através da otimização da gestão de inventários ou do planeamento e gestão de encomendas. Segundo o estudo “Managing a modern supply chain: Utilizing AI to combat complexity” da Deloitte, mais de 25 grandes organizações alcançaram, em apenas três anos, mais de três mil milhões de dólares (2,8 mil milhões de euros) em benefícios, fruto da implementação de soluções de IA aplicadas à cadeia de abastecimento.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar a personalização da experiência do consumidor. “Esta customização contribui diretamente para o aumento da fidelização dos clientes e para a promoção de mais transações, já que, desta forma, os consumidores se sentem mais valorizados e compreendidos. No mesmo sentido, o aumento da produtividade, tanto em lojas físicas quanto nos contact centers, ocorre pela automação e otimização dos processos, libertando as equipas para tarefas de maior valor acrescentado”, sublinha o executivo da Capgemini Portugal.

A IA generativa tem o potencial de automatizar funções-chave como o serviço ao cliente, o marketing, as vendas e a gestão de inventário e da cadeia de abastecimento. John Lin, SVP of solutions consulting na SymphonyAI, divide esta transformação em quatro fases: business intelligence, IA prescritiva e preditiva, IA generativa e preditiva e, por fim, agentes autónomos. “A maioria da indústria está entre o ponto um e o ponto dois”, afirma.

 

Business people and humanoid AI robot sitting and waiting for a job interview: AI vs human competition
Foto: Shutterstock

E quais são, afinal, as diferenças entre estas fases? Na segunda etapa, a IA começa a gerar recomendações, sobretudo ao nível da criação de cenários previsionais. Na terceira fase, já é capaz de sugerir os próximos passos, auxiliando na definição de estratégias e táticas a adotar. Finalmente, na quarta fase, a IA atinge um grau de autonomia que lhe permite executar decisões com base num conjunto de parâmetros pré-definidos. “Até à última fase há intervenção humana”, esclarece John Lin.

E do ponto de vista prático, como é que estas soluções se traduzem no dia a dia do retalho? De acordo com a Touchpoint Consulting, até 75% do tempo semanal atualmente despendido em reportes e análises pode ser eliminado — ou, pelo menos, significativamente reduzido — com recurso a IA. Um bom exemplo é a solução CINDE, apresentada durante um evento da área. Trata-se de uma ferramenta que oferece aos gestores uma visão clara e intuitiva sobre o desempenho da loja e dos seus produtos, com um assistente virtual embutido que fornece respostas em tempo real às questões operacionais do dia a dia.

A solução funciona como uma camada adicional que interage com os sistemas existentes do retalhista, analisando dados acumulados dos últimos dois anos e meio. É importante lembrar que a IA só funciona de forma eficaz quando alimentada por dados de qualidade, condição essencial para extrapolar e prever cenários com rigor.

A Sensei, por exemplo, disponibiliza soluções tecnológicas que combinam visão computacional, sensores e processamento de dados em tempo real para criar lojas autónomas. “O cliente entra, escolhe os produtos e sai — sem filas nem caixas. Parece magia, mas é tecnologia aplicada com um propósito: oferecer a melhor experiência de compra possível”, explica Vasco Portugal, CEO da empresa.

 

É a ausência de uma estrutura sólida de dados que compromete os resultados obtidos com a IA. A este fator acresce ainda o facto de qualquer processo de transformação digital implicar investimentos significativos, algo que representa, inevitavelmente, um desafio financeiro adicional, sobretudo para empresas que ainda não dispõem de infraestruturas tecnológicas avançadas

 

Por detrás desta simplicidade está um sistema inteligente que monitoriza tudo o que se passa na loja: desde os produtos que os clientes pegam e largam ao estado das prateleiras e à atividade da equipa. E, como sublinha o responsável, “não se trata apenas de automatizar o pagamento — trata-se de criar operações mais ágeis, eficientes e, acima de tudo, com uma experiência de compra melhor para todos”. O pagamento pode ser feito por qualquer método — app, cartão ou dinheiro — assegurando uma jornada fluida e acessível. O verdadeiro valor, contudo, reside nos dados. “Conseguimos fornecer insights sobre o comportamento de compra, performance de categorias ou até sobre como a disposição dos produtos afeta as vendas. Estes dados podem também ser partilhados com marcas e CPGs, promovendo uma gestão mais estratégica do ponto de venda”, reforça.

Além disso, a Sensei ajuda a reduzir custos operacionais e a viabilizar modelos de funcionamento 24/7, mesmo em lojas de pequena dimensão. A solução é escalável e adaptável, seja num hipermercado, numa loja de conveniência ou num espaço hospitalar. “A ideia é simples: tornar o retalho mais inteligente, sem o tornar mais complexo”.

Também a Priceless atua com esta lógica de proximidade e customização. A empresa tem vindo a apoiar retalhistas na adoção de ferramentas práticas e ajustadas às especificidades de cada operação. Entre as soluções disponibilizadas incluem-se análise de tráfego, automação de processos e geração de insights preditivos. Um dos casos destacados é o da FootfallCam, ferramenta que permite uma análise detalhada do comportamento dos consumidores e ajuda os gestores a tomar decisões informadas e em tempo real.

 

Obstáculos a ultrapassar

Mas, como diz o ditado, “nem tudo são rosas”. Apesar do enorme potencial da inteligência artificial, há ainda vários desafios a ultrapassar. Um recente estudo da Associação da Economia Digital (ACEPI) revela que a falta de uma estratégia de dados é, atualmente, o maior obstáculo à adoção eficaz da IA generativa no retalho nacional. Nesta linha, João Sanches salienta que um dos principais entraves reside precisamente na qualidade e na gestão dos dados. Isto é especialmente relevante se considerarmos que a eficácia da tecnologia depende, em larga medida, de dados precisos e bem organizados.

Segundo o executivo, muitas vezes, é a ausência de uma estrutura sólida de dados que compromete os resultados obtidos com a IA. A este fator acresce ainda o facto de qualquer processo de transformação digital implicar investimentos significativos, algo que representa, inevitavelmente, um desafio financeiro adicional, sobretudo para empresas que ainda não dispõem de infraestruturas tecnológicas avançadas.

 

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Importa também referir a tradicional resistência à mudança, frequentemente acompanhada de desconfiança. Esta resistência é particularmente visível, como nota a Priceless, em contextos onde os processos ainda são manuais ou fragmentados. Para além disso, a integração com sistemas legados e a ausência de dados normalizados complicam ainda mais a implementação da IA nas organizações.

Outro ponto crítico é a necessidade de garantir que as soluções implementadas sejam escaláveis. “À medida que as empresas crescem, os modelos implementados podem deixar de ter capacidade para se adaptarem às novas necessidades”, alerta João Sanches.

A dificuldade em definir o ROI (retorno sobre o investimento) constitui igualmente uma barreira relevante. Como explica o head of generative AI & enterprise transformation programs da Capgemini Portugal, o retorno nem sempre é imediato ou facilmente mensurável, o que “pode dificultar a justificação dos investimentos a fazer”.

 

Para além da inteligência artificial em sentido lato, importa também considerar outras ferramentas tecnológicas que estão a ganhar relevância no sector. Uma das mais discutidas atualmente diz respeito aos agentes conversacionais. A grande questão que se coloca é: entre IA generativa e agentes conversacionais, onde se verifica, de facto, o maior impacto no retalho?

 

“O maior desafio foi — e continua a ser — integrar uma tecnologia altamente inovadora num sector onde tudo está milimetricamente otimizado”, afirma Vasco Portugal. O CEO da Sensei acrescenta que a abordagem da empresa “sempre foi a de que a tecnologia deve ser invisível para o cliente e transparente para quem opera. O objetivo é que a experiência de compra se mantenha natural e fluida, onde o cliente só percebe que está numa loja autónoma no final da sua jornada. Para isso, tivemos de repensar papéis — por exemplo, os colaboradores deixaram de estar apenas nas caixas para se focarem no que realmente faz a diferença: a experiência do cliente e a operação em loja”.

Nesta perspetiva, a parte mais desafiante é mesmo “lidar com toda a complexidade de um supermercado real — 14 mil referências numa única loja, processar os carrinhos de mais de mil clientes diários por loja, produtos frescos, artigos a peso, balcões assistidos”. E é precisamente aqui que entra a experiência da empresa: “trabalhamos com cenários reais, com todas as suas variáveis, e sem comprometer a experiência de quem compra”.

 

IA generativa versus agentes conversacionais

Para além da inteligência artificial em sentido lato, importa também considerar outras ferramentas tecnológicas que estão a ganhar relevância no sector. Uma das mais discutidas atualmente diz respeito aos agentes conversacionais. A grande questão que se coloca é: entre IA generativa e agentes conversacionais, onde se verifica, de facto, o maior impacto no retalho?

Apesar de não haver uma resposta definitiva, uma vez que muitos projetos em Portugal ainda se encontram numa fase inicial, João Sanches acredita que ambas as tecnologias estão a transformar significativamente vários sectores de atividade. Os efeitos são particularmente evidentes nas áreas da experiência do cliente, do marketing, do e-commerce, do suporte interno e da inovação.

Um exemplo claro desta transformação é a utilização de chatbots e assistentes de compra com linguagem natural, que têm vindo a revolucionar a forma como as empresas interagem com os consumidores. Estes sistemas, disponíveis 24/7, oferecem não só suporte em vários idiomas como também garantem uma experiência personalizada e eficiente. É precisamente este avanço na automação das interações humanas que, segundo João Sanches, resulta numa maior satisfação dos clientes, uma vez que estes conseguem resolver dúvidas ou realizar compras de forma mais ágil, sem depender de agentes humanos, beneficiando de uma experiência contínua e sem interrupções.

“Cada vez mais, a experiência conta tanto como o produto”, sublinha Vasco Portugal. Para o CEO da Sensei, é nesse campo que a IA generativa e os agentes conversacionais fazem a diferença — ao trazerem um toque mais humano (curiosamente, através da tecnologia) à experiência digital na loja física. Como ilustra, “imaginemos um cenário em que o cliente entra numa loja e é recebido por um assistente digital capaz de o orientar, responder a dúvidas ou sugerir combinações de produtos com base em toda a informação recolhida em loja — tudo em tempo real e de forma natural. Isto transforma a ida à loja numa experiência mais intuitiva, personalizada e, acima de tudo, memorável. A loja deixa de ser apenas um ponto de venda para se tornar um ponto de relação”.

Por seu lado, a Priceless apresenta uma visão mais sintética, mas igualmente esclarecedora: a IA generativa tem enorme potencial na criação de conteúdos personalizados para e-commerce e campanhas de marketing, enquanto os agentes conversacionais estão a redefinir o atendimento ao cliente — tanto online como nas lojas físicas — proporcionando respostas rápidas e eficazes, melhorando a experiência do consumidor e libertando as equipas para tarefas de maior valor.

 

A aplicação da IA generativa vai muito além do front office. No marketing e no e-commerce, por exemplo, já permite níveis de personalização extrema, com ferramentas que criam descrições de produtos, campanhas automatizadas e segmentações de públicos-alvo de forma hiperpersonalizada. A capacidade de criar campanhas em tempo real e adaptá-las rapidamente às mudanças de mercado e às tendências de consumo representa, para as empresas, uma clara vantagem competitiva

 

A aplicação da IA generativa vai, aliás, muito além do front office. No marketing e no e-commerce, por exemplo, já permite níveis de personalização extrema, com ferramentas que criam descrições de produtos, campanhas automatizadas e segmentações de públicos-alvo de forma hiperpersonalizada. “O uso da IA para gerar conteúdos direcionados a diferentes nichos, com base em dados reais de comportamento do consumidor, torna as campanhas mais eficazes e impacta diretamente nas taxas de conversão e fidelização”, explica João Sanches. A capacidade de criar campanhas em tempo real e adaptá-las rapidamente às mudanças de mercado e às tendências de consumo representa, para as empresas, uma clara vantagem competitiva.

 

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Há, no entanto, outros campos igualmente relevantes, ainda que menos visíveis. No suporte interno das organizações, os agentes conversacionais desempenham um papel fundamental na otimização de processos ligados aos recursos humanos, formação, onboarding e apoio às lojas. A IA, por sua vez, automatiza tarefas administrativas, facilita a integração de novos colaboradores, promove uma gestão mais eficiente do talento e permite até oferecer formação personalizada. No apoio às lojas, os agentes virtuais fornecem respostas rápidas a questões frequentes e prestam suporte técnico, libertando as equipas para se dedicarem a funções mais estratégicas.

Por fim, João Sanches destaca um outro benefício decisivo: o impulso à inovação e ao design. A IA permite às empresas cocriarem produtos e conceitos baseados em tendências e dados em tempo real. A capacidade de analisar grandes volumes de dados e identificar padrões emergentes no comportamento do consumidor oferece uma vantagem competitiva clara na antecipação de necessidades do mercado. Além disso, a colaboração entre humanos e IA no processo criativo acelera o desenvolvimento de novos produtos, tornando-os mais ajustados às exigências dos consumidores.

 

Desafios tecnológicos versus comportamentais

No momento de implementar ferramentas de inteligência artificial, surgem inevitavelmente múltiplos desafios. A questão que se impõe é: quais destes desafios são os mais impactantes para as organizações — os tecnológicos ou os comportamentais?

Para a Priceless, a resposta é clara: os desafios são híbridos. Do lado tecnológico, destacam-se questões como a qualidade dos dados disponíveis e a integração com sistemas antigos, muitas vezes desatualizados. Já do lado comportamental, a resistência à mudança e a ausência de conhecimento interno sobre estas novas ferramentas podem comprometer seriamente a eficácia das soluções. Um exemplo concreto é a implementação de contadores inteligentes em várias lojas, onde, segundo a empresa, o maior desafio não foi tecnológico, mas sim alinhar as equipas internas com os objetivos da solução.

Já Vasco Portugal apresenta uma perspetiva ligeiramente distinta. O CEO da Sensei defende que o maior desafio não é de ordem técnica, mas sim cultural. Como explica, “a tecnologia já está madura. O que é difícil é introduzir mudança num sector que, por natureza, é conservador e vive com margens muito apertadas”. Por esse motivo, é essencial garantir que a inovação tecnológica não gera fricção na jornada do consumidor nem se traduz em sobrecarga para quem opera as lojas. “O nosso carrinho em tempo real, por exemplo, foi um grande avanço porque permitiu entrar numa loja autónoma sem app nem registo. É isso que queremos: inovação sem barreiras, sem complicações, e centrada nas pessoas”, afirma.

Para melhor compreender esta complexidade, vale a pena observar a leitura da Capgemini Portugal, que classifica os desafios em três grandes grupos: tecnológicos, comportamentais e organizacionais. No primeiro grupo, incluem-se a integração com sistemas legados, a qualidade e normalização dos dados, a escalabilidade dos algoritmos e, ainda, a escassez de talento especializado. No campo comportamental, sobressaem a resistência à adoção, a insegurança laboral e o desconhecimento quanto ao valor real da IA. Por fim, os desafios organizacionais remetem para as alterações estruturais que a IA generativa exige, nomeadamente no modo de trabalhar e na capacidade acrescida de automatização em áreas até aqui reservadas ao conhecimento humano, como a criação de novos produtos ou de conteúdo digital, aspetos particularmente relevantes no retalho.

 

“A verdade é que a inteligência artificial, em especial a IA generativa, representa uma nova era no retalho. Os líderes que souberem conjugá-la com uma estratégia centrada no cliente, em dados de qualidade e na ética digital terão uma vantagem competitiva significativa. O retalho do futuro será mais inteligente, mais eficiente e muito mais personalizado”

 

Nada melhor do que um exemplo concreto para ilustrar esta realidade. A Capgemini relata o caso de uma grande cadeia de moda que, ao introduzir IA generativa na criação de descrições de produto, enfrentou inicialmente rejeição por parte das equipas de marketing. Contudo, após um processo de formação, demonstração de valor e implementação controlada num projeto-piloto, a solução acabou por ser integrada com sucesso. Hoje, a ferramenta gera 80% do conteúdo do e-commerce da marca. “A verdade é que a inteligência artificial, em especial a IA generativa, representa uma nova era no retalho. Os líderes que souberem conjugá-la com uma estratégia centrada no cliente, em dados de qualidade e na ética digital terão uma vantagem competitiva significativa. O retalho do futuro será mais inteligente, mais eficiente e muito mais personalizado”, conclui João Sanches.

 

Dados: o ouro de qualquer projeto

Qualquer projeto baseado em inteligência artificial assenta, necessariamente, na análise de dados. No caso do retalho, esta dependência é ainda mais evidente. Assim, a qualidade dos mesmos é, sem dúvida, um dos fatores mais determinantes para o sucesso destas iniciativas.

Segundo a Priceless, os dados críticos no retalho dizem respeito a variáveis como as entradas e permanência em loja, os fluxos de clientes, as vendas por hora, as condições meteorológicas e os resultados de campanhas. Todos estes elementos são fundamentais para a otimização das operações. A empresa sublinha que ferramentas como a FootfallCam possibilitam a recolha fiável desses dados em tempo real, permitindo uma tomada de decisão mais rápida e informada.

Já Vasco Portugal adota uma postura mais cautelosa. Para o CEO da Sensei, tudo “depende do contexto”. No entanto, reconhece que existe um denominador comum: a informação que diz respeito ao que acontece nas prateleiras. Saber se um produto está no linear, se está bem posicionado e se está a ser reposto a tempo é crucial, pois impacta diretamente as vendas e a experiência do cliente. Quando essa informação é cruzada com dados transacionais e de inventário, torna-se possível tomar decisões mais ágeis, evitar ruturas e concentrar esforços no que realmente importa para o consumidor.

Por seu lado, João Sanches oferece uma visão detalhada com base na experiência da Capgemini. O executivo explica que, para otimizar operações com IA, é essencial recolher e analisar uma variedade de dados que sustentem decisões mais informadas, personalizem a experiência do cliente e aumentem a eficiência. Entre os mais relevantes destacam-se os dados comportamentais — como a jornada de compra, os cliques e os abandonos de carrinho —, que ajudam a identificar pontos de atrito e a melhorar a conversão. Estes dados permitem afinar estratégias de marketing e melhorar os processos de venda.

O histórico transacional é outro ativo valioso. Este revela padrões como a frequência de compra, a composição dos carrinhos e o valor médio por transação, fornecendo insights sobre preferências de consumo e permitindo uma personalização mais eficaz das ofertas. Além disso, as opiniões e preferências expressas pelos clientes devem ser monitorizadas para adaptar produtos e serviços às expectativas do mercado, promovendo relações mais sólidas e duradouras com os consumidores.

 

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Não menos importantes são os dados externos e de contexto, como variáveis ambientais, tendências sociais ou sazonalidade. Estes permitem antecipar oscilações na procura e ajustar operações de acordo com fatores externos que influenciam o comportamento de compra. Por essa razão, são essenciais para planear campanhas e alinhar a oferta às exigências do momento.

João Sanches destaca ainda a relevância crescente dos dados de sustentabilidade, como a pegada ambiental dos processos de compra. Numa era em que as preocupações ambientais ganham peso, as empresas devem monitorizar e mitigar o seu impacto, ajustando-se às exigências regulatórias e aos valores dos consumidores. A integração eficiente destes dados permite melhorar a eficiência operacional e oferecer uma experiência de cliente mais personalizada, transparente e sustentável, elementos cada vez mais valorizados num mercado em rápida transformação.

Mas há ainda uma questão incontornável: como garantir a ética e a transparência na utilização da IA? Para João Sanches, é essencial assegurar a transparência dos algoritmos, disponibilizar explicações sobre as decisões automatizadas e implementar estruturas de governação e auditoria. A Capgemini defende o princípio do AI Responsible by Design, que incorpora ética, privacidade e inclusão desde o início de cada projeto.

A Priceless reforça essa visão, assegurando que todas as suas ferramentas cumprem o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados e garantem a anonimização dos dados. “Não recolhemos imagens identificáveis, assegurando a privacidade e a conformidade legal. A transparência no tratamento dos dados é fundamental para garantir que os clientes e consumidores se sintam seguros”, afirma a empresa.

Na mesma linha, Vasco Portugal sublinha que, para a Sensei, a privacidade é inegociável. “A nossa tecnologia não usa reconhecimento facial nem precisa de dados biométricos para funcionar. O cliente pode fazer toda a jornada de forma totalmente anónima, a não ser que opte por se identificar, por exemplo através de um programa de fidelização”. Acrescenta ainda que a empresa trabalha lado a lado com os parceiros para garantir total transparência. “A confiança não se constrói com o que dizemos, mas sim com as práticas que aplicamos nas nossas lojas, na nossa tecnologia e na forma como lidamos com os clientes”.

 

Lidar com sistemas existentes

Avançar para o futuro implica, quase sempre, saber integrar o presente. No universo do retalho, poucas empresas partem do zero no que toca a sistemas tecnológicos. Assim, a implementação de soluções de inteligência artificial obriga, inevitavelmente, a lidar com infraestruturas existentes, muitas vezes baseadas em tecnologias anteriores, mas que continuam ativamente em operação.

Vasco Portugal é perentório neste ponto: “não acreditamos em revoluções que partem tudo para começar do zero. Acreditamos em evoluções que se encaixam no que já existe”. O CEO da Sensei explica que a tecnologia da empresa é modular, flexível e concebida para se integrar com os sistemas dos retalhistas — desde os pagamentos aos ERP — através de APIs bem definidas. Esta abordagem permite começar com um projeto-piloto e escalar de forma progressiva, garantindo uma integração fluida e sem exigir alterações disruptivas nas infraestruturas existentes. “É a IA que deve seguir o negócio do retalho, e não o contrário”, afirma.

A Priceless partilha uma lógica semelhante. A empresa começa por realizar uma análise detalhada da infraestrutura tecnológica de cada cliente, identificando formas de integrar a IA como um complemento aos sistemas já em funcionamento. No caso concreto da FootfallCam, por exemplo, é possível integrar os dados recolhidos com plataformas de business intelligence, sistemas ERP ou dashboards internos, assegurando assim a centralização da informação e facilitando a tomada de decisões estratégicas com base em dados fiáveis e acessíveis.

 

Estamos a transitar de um retalho “assistido por IA” para um retalho “movido por IA”. Durante anos, surgiram soluções isoladas — como monitorização de prateleiras, deteção de furtos ou análise de tráfego — que operavam em silos. O passo seguinte é, para a Sensei, claro: consolidar todas essas funções numa plataforma integrada, onde os dados comunicam entre si e suportam decisões em tempo real

 

Este tipo de integração progressiva, que respeita o legado tecnológico das organizações, permite aos retalhistas adotar soluções avançadas sem correrem o risco de desorganizar operações críticas. É uma ponte entre o passado e o futuro digital e, cada vez mais, uma condição essencial para garantir a viabilidade e o sucesso de qualquer transformação baseada em IA.

 

Para onde caminha a IA?

Com base na análise das tendências atuais e na experiência de quem está no terreno, é possível traçar algumas linhas orientadoras sobre o futuro da IA no retalho. No entanto, não existe consenso absoluto.

Para a Priceless, o caminho está claro: a IA tornar-se-á cada vez mais central nas operações do retalho. A empresa prevê um aumento significativo da automatização e da personalização da experiência do cliente, com soluções que atuam em tempo real para melhorar simultaneamente a produtividade e os resultados financeiros das lojas. “A IA vai deixar de ser algo complementar e passará a ser um verdadeiro pilar das operações diárias”, defende a organização.

Já Vasco Portugal acredita que estamos a transitar de um retalho “assistido por IA” para um retalho “movido por IA”. O CEO da Sensei observa que, durante anos, surgiram soluções isoladas — como monitorização de prateleiras, deteção de furtos ou análise de tráfego — que operavam em silos. O passo seguinte, diz, é claro: consolidar todas essas funções numa plataforma integrada, onde os dados comunicam entre si e suportam decisões em tempo real. “Vamos ver mais lojas autónomas, claro, mas também uma personalização muito mais fina da experiência — com promoções e sugestões de produtos à medida de cada cliente. A IA vai estar em todo o lado, mas sem ser intrusiva. E a nossa missão é garantir que os retalhistas possam acompanhar essa transição de forma fluida, escalável e sem perder o foco no que realmente importa: o cliente”.

João Sanches acrescenta uma perspetiva complementar: “iremos evoluir do uso tático para uma abordagem estratégica”. Na visão do executivo da Capgemini, a IA passará de um conjunto de use cases isolados para plataformas integradas com assistentes inteligentes, capazes de automatizar de forma total o planeamento e a gestão das lojas. Esta evolução será sustentada pela convergência entre IA, Internet das Coisas (IoT) e analytics, que ganhará particular importância no curto prazo. Nesse contexto, a IA generativa será um motor para os processos de marketing, atendimento ao cliente, criação de conteúdos e formação de colaboradores.

 

“Vamos ver mais lojas autónomas, claro, mas também uma personalização muito mais fina da experiência — com promoções e sugestões de produtos à medida de cada cliente. A IA vai estar em todo o lado, mas sem ser intrusiva. E a nossa missão é garantir que os retalhistas possam acompanhar essa transição de forma fluida, escalável e sem perder o foco no que realmente importa: o cliente”

 

Mas e em Portugal? Quais serão as tendências com maior impacto no retalho? João Sanches considera que estamos perante uma nova “onda” de disrupção tecnológica, com impacto potencial especialmente forte no pequeno e médio comércio. Reconhece, contudo, que o país enfrenta um desafio específico: o peso do retalho tradicional, fortemente representado por PMEs, muitas vezes com baixa capacidade de investimento em tecnologia digital. Segundo o executivo, para que estas empresas não fiquem para trás, é urgente criar condições que lhes permitam abraçar a transformação digital. Caso contrário, arriscam-se a perder competitividade, quer por quebra de eficiência operacional, quer por incapacidade de responder às novas exigências dos consumidores.

Apesar disso, há sinais positivos. Tendências globais como o retail media impulsionado por IA, a personalização em tempo real, a automação de processos comerciais e a integração das lojas físicas com os canais digitais representam, segundo João Sanches, oportunidades concretas para o retalho nacional se reinventar. Para tal, alerta, estas inovações devem ser integradas numa visão estratégica de longo prazo, com forte apoio na capacitação digital dos agentes económicos.

Vasco Portugal concorda e reforça que Portugal também está exposto às grandes pressões globais: margens estreitas, escassez de talento e consumidores cada vez mais exigentes. Para o CEO da Sensei, isso reforça a importância de soluções como lojas autónomas, personalização baseada em dados e eficiência operacional. Além disso, observa um movimento claro no sentido de abandonar micro soluções, que resolvem apenas parte dos problemas, em favor de plataformas integradas. “O futuro está em soluções que ofereçam uma visão holística da loja e do cliente — e é aí que estamos a apostar”, conclui.

Com esta combinação de desafios e oportunidades, a inteligência artificial está a redesenhar silenciosamente o presente do retalho. A questão já não é se as empresas devem adotá-la, mas como o farão — e com que impacto.

 

Este artigo foi publicado na edição N.º 93 da Grande Consumo.

 

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Por Bruno Farias

Diretor na revista Grande Consumo. Um eterno sonhador, um resiliente trabalhador. Pai do Afonso e do José.

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