Nos últimos meses, os debates em torno da autossuficiência regional e da resiliência económica ocuparam um lugar central na Europa. Uma das iniciativas resultantes destes debates é o movimento BuyFromEU. Um movimento digital que emerge, principalmente, entre consumidores europeus empenhados em impulsionar estratégias económicas regionais, dinamizar as cadeias de valor locais e refletir sobre as implicações políticas de apoiar produtos made in EU em vez de importações. Alimentado pelas atuais tensões geopolíticas recentes entre a União Europeia e os Estados Unidos da América, por preocupações ambientais ligadas à redução de emissões e por um renovado sentido de solidariedade interna, o BuyFromEU materializa-se sobretudo em fóruns online, grupos em redes sociais e diretórios que facilitam a identificação de alternativas europeias. Mais do que boicotes pontuais, o movimento pretende fomentar um debate abrangente sobre como a escolha de produtos locais pode fortalecer os mercados internos, sustentar empregos e aumentar a autonomia estratégica do Velho Continente, ao mesmo tempo que questiona a dependência nas grandes plataformas e em cadeias de abastecimento externas.
Poucos meses após o regresso de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América, a retirada abrupta do apoio da sua administração à Ucrânia, as dúvidas sobre a sua posição na NATO, a adoção de táticas repressivas de segurança interna e a imposição de tarifas aduaneiras sobre importações da União Europeia criaram uma forte tensão nos laços transatlânticos.
É neste contexto que surge o movimento BuyFromEU, uma campanha digital que alavanca uma grande comunidade na rede social Reddit e na plataforma online GoEuropean, dedicada a ajudar os consumidores a identificar e escolher produtos fabricados na União Europeia. Mais de 220 mil consumidores já se uniram, no subreddit r/BuyFromEU, para renunciar a marcas norte-americanas em favor de alternativas fabricadas na Europa, partilhando dicas práticas para adquirir produtos locais. Este movimento de protesto popular canaliza o descontentamento económico para a ação coletiva, procurando reconstruir as cadeias de abastecimento regionais e reafirmar a autonomia dos consumidores face às políticas “America First”.
Ainda em pleno crescimento, o movimento é o reflexo de uma tendência mais ampla na União Europeia para a autossuficiência regional e a autonomia estratégica, uma resposta às tensões comerciais do mundo real, sobretudo as tarifas do “Dia da Libertação” de abril de 2025, anunciadas pela administração dos Estados Unidos, quando Donald Trump comunicou uma tarifa geral de 20% sobre as importações da União Europeia – posteriormente suspensa por 90 dias – desencadeando os preparativos para medidas recíprocas e reacendendo os debates sobre a soberania económica.
Reduzir a dependência
O Regulamento das Matérias-Primas Críticas (CRMA), adotado em 2023, representa um pilar fundamental na estratégia da União Europeia para reforçar a sua autonomia estratégica. Esta legislação estabelece metas ambiciosas para 2030, exigindo que, pelo menos, 10% das matérias-primas críticas consumidas na União Europeia seja extraído internamente e que nenhum país terceiro deverá fornecer mais de 65% de um mesmo material estratégico, além de prever aumentos significativos nas capacidades de transformação (40%) e reciclagem (25%). Com estas medidas, a Europa pretende reduzir a sua dependência de importações e fortalecer a resiliência das suas cadeias de abastecimento.
Como instrumento-chave de concretização do CRMA, a Comissão Europeia aprovou, em março, 47 projetos estratégicos distribuídos por 13 Estados-membros, onde se inclui Portugal, com o objetivo de expandir a produção de 14 matérias-primas essenciais. Portugal participa com quatro projetos, sendo três centrados na exploração de lítio e um na produção de cobre. Estes projetos beneficiam de processos de licenciamento acelerados e apoios financeiros dedicados, refletindo um esforço coordenado da União Europeia para dinamizar a sua base industrial. Ao garantir maior acesso a matérias-primas estratégicas, estas iniciativas ajudam a superar os estrangulamentos críticos na economia europeia e a reforçar a sua competitividade global.
O movimento de protesto popular BuyFromEU canaliza o descontentamento económico para a ação coletiva, procurando reconstruir as cadeias de abastecimento regionais e reafirmar a autonomia dos consumidores face às políticas “America First”
Paralelamente às estratégias de matérias-primas, as alianças industriais, como a Aliança Europeia de Baterias (EBA), sublinham o compromisso da União Europeia em promover um ecossistema transformador competitivo. Com o objetivo de estabelecer uma cadeia de valor de células de bateria de ponta a ponta na Europa, esta iniciativa deverá desbloquear 250 mil milhões de euros em oportunidades de mercado, até ao final de 2025. Tais esforços são vitais para manter a competitividade global da União Europeia em sectores de elevada procura, como os veículos elétricos e as energias renováveis.
Por último, as tensões geopolíticas ampliaram a urgência de resiliência económica no seio da União Europeia. As tarifas do “Dia da Libertação” impostas pelos Estados Unidos, com taxas universais a começar nos 10% e a aumentar para 20% nos produtos da União Europeia, sublinharam a fragilidade das relações comerciais transatlânticas. Estes objetivos procuram atenuar as vulnerabilidades expostas por perturbações no comércio internacional e alinham-se estreitamente com a missão do movimento BuyFromEU de dar prioridade à produção regional.
Impacto no retalho
A experiência do Canadá, onde reina a indignação com a política de Donald Trump pelo ataque à sua soberania, inspirou o movimento BuyFromEU e mostrou como os boicotes podem impactar significativamente as marcas norte-americanas. Em resposta às tarifas impostas pelos Estados Unidos, os supermercados canadianos removeram marcas norte-americanas das prateleiras, afetando fortemente os fabricantes de bebidas alcoólicas, para os quais o Canadá é um importante mercado de vendas. Lawson Whiting, CEO da Brown-Forman, fabricante do bourbon Jack Daniel’s, destacou esta retirada dos produtos como uma “resposta inadequada” que já causou danos significativamente maiores do que as tarifas impostas por Trump.
Os retalhistas europeus começaram a responder ao movimento, mas com cautela. Em vez de boicotar os produtos norte-americanos, optaram por ajudar o consumidor a “escolher local”. O grupo dinamarquês Salling, por exemplo, implementou, no final de fevereiro, uma estrela preta nas etiquetas eletrónicas de preços, facilitando a identificação pelos consumidores que desejam apoiar a produção local, em lojas na Dinamarca, Alemanha e Polónia, das insígnias Føtex, Netto e Bilka. O CEO, Anders Hagh, escreveu na plataforma LinkedIn, sem mencionar explicitamente os Estados Unidos ou Trump, “facilitamos a compra de produtos europeus”, indicando que a iniciativa visa fornecer informações adicionais aos consumidores, permitindo escolhas mais conscientes, sem representar um boicote a produtos de outras origens. Resta saber se outras cadeias europeias seguirão o exemplo.
As tensões geopolíticas ampliaram a urgência de resiliência económica no seio da União Europeia. As tarifas do “Dia da Libertação” impostas pelos Estados Unidos, com taxas universais a começar nos 10% e a aumentar para 20% nos produtos da União Europeia, sublinharam a fragilidade das relações comerciais transatlânticas. Estes objetivos procuram atenuar as vulnerabilidades expostas por perturbações no comércio internacional e alinham-se estreitamente com a missão do movimento BuyFromEU de dar prioridade à produção regional
Esta abordagem subtil é sintomática de um sector que pouco depende dos produtos norte-americanos. Os Estados Unidos desempenham um papel relativamente menor no mercado de bens de consumo diários da União Europeia e, em sectores como a alimentação, as importações deste mercado representam uma pequena fração do consumo europeu. De facto, de acordo com a Comissão Europeia, a União Europeia exportou 228,6 mil milhões de euros em produtos agroalimentares para os Estados Unidos em 2023, enquanto importou apenas 158,6 mil milhões de euros, resultando num excedente comercial recorde de 70,1 mil milhões de euros. Esta dependência limitada dos produtos alimentares dos Estados Unidos e a pequena presença nas prateleiras pode ajudar a explicar a reticência dos grandes retalhistas europeus em fazer declarações públicas de apoio à campanha BuyFromEU.
Na resposta às tarifas de retaliação planeadas, a União Europeia decidiu não incluir o bourbon norte‑americano, um dos produtos que mais atenção tem merecido nos últimos tempos, na lista final de bens sujeitos a direitos adicionais, após forte lobby de alguns países europeus. A ameaça de Trump de punir, com tarifas de 200% sobre o vinho europeu e o champanhe, os países que tributassem o bourbon foi suficiente para levar diferentes Estados-membros – liderados por França e pela Itália – a optar pela eliminação da referência, evitando, assim, perturbar o comércio de bebidas transatlântico.
Principais importações
Mas, embora os Estados Unidos não dominem os corredores dos supermercados da União Europeia, continuam a ser indispensáveis em categorias estratégicas de elevado valor. Em 2023, as principais importações vindas do lado de lá do Atlântico incluíram petróleo e combustíveis, produtos farmacêuticos, motores e aeronaves. No quarto trimestre de 2023, 17% das importações de petróleo da União Europeia foi originário dos Estados Unidos, tornando-os no principal fornecedor do bloco europeu nesse segmento. Os Estados Unidos representaram quase 40% do total das importações extra-UE de produtos farmacêuticos em 2023, sublinhando a profundidade da quota de mercado americana nesta área estratégica. Estes são sectores onde a influência do consumidor é menos direta, mas as decisões de aquisição por parte das empresas e instituições públicas desempenham um papel crucial.
O sector automóvel, no entanto, oferece uma amostra do impacto potencial da escolha do consumidor. As vendas da Tesla na Europa caíram 45% em janeiro, em comparação com o mesmo mês do ano passado, passando de 18.161 para 9.945 unidades registadas, segundo um relatório da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis. Embora estejam em causa vários fatores – desde o aumento da concorrência à incerteza económica –, o valor simbólico da Tesla como ícone tecnológico norte-americano, agravado pelo envolvimento político do CEO, Elon Musk, torna o seu declínio notável no contexto de um crescente movimento entre os consumidores europeus que prioriza a União Europeia. Mesmo que os consumidores não possam influenciar diretamente os sectores farmacêutico ou aeroespacial, as suas preferências sinalizam mudanças mais amplas que as empresas e os decisores políticos não podem ignorar.
À medida que as tensões com os Estados Unidos persistem, especialmente após as tarifas punitivas sobre os produtos da União Europeia, movimentos como o BuyFromEU podem evoluir de protesto para política
Boicote sem ideologia económica
O que diferencia a campanha BuyFromEU de outros boicotes é a evidente falta de ideologia económica. O movimento não se opõe ao capitalismo nem às grandes empresas, desde que sejam europeias. No Reddit e nas plataformas afiliadas, os utilizadores celebram tudo o que é europeu. Desde o fabricante de smartphones sustentável dos Países Baixos, Fairphone, aos novos modelos da Volkswagen, até a uma startup de vestuário da Ucrânia e marcas locais de refrigerantes, como a Fritz-Kola, enquanto alternativas aos nomes conhecidos dos Estados Unidos. Na sua essência, o movimento visa fortalecer a soberania económica da Europa.
Por enquanto, o movimento BuyFromEU é mais simbólico do que transformador. Mas os símbolos podem ter poder, alterar a perceção pública, influenciar as estratégias corporativas e, eventualmente, influenciar as compras governamentais. À medida que as tensões com os Estados Unidos persistem, especialmente após as tarifas punitivas sobre os produtos da União Europeia, movimentos como o BuyFromEU podem evoluir de protesto para política.
A longo prazo, não se trata apenas de refrigerantes, automóveis ou smartphones, mas sim de quem controla as cadeias de abastecimento do futuro e de como os consumidores, as empresas e os governos decidem navegar numa economia global cada vez mais polarizada.
Este artigo foi publicado na edição N.º 92 da Grande Consumo
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