Cita uma frase de um artigo publicado pela conceituada revista Forbes que, no seu entender, resume na perfeição o atual momento vivido pelo retalho a nível mundial: “Physical retail isn’t dead. Boring retail is”. Para Pedro Miguel Silva, Associate Partner de Retail & Consumer Products da Deloitte Portugal, o tão apregoado apocalipse do retalho não passa de um mito. O que se tem vindo a comprovar, com a crescente onda de encerramentos de lojas e falências sonantes, sobretudo nos mercados mais maduros, é que fazer mais do mesmo é a única opção sem futuro. Em entrevista à Grande Consumo, aborda algumas das conclusões de um dos mais recentes estudos da Deloitte sobre o retalho, que perspetiva que 2019 será um ano de transição. Uma máxima irá, contudo, prevalecer, não obstante a onda de mudança que se avizinha: à falta de diferenciação, vencerá sempre o preço mais baixo.
Grande Consumo – O recente estudo “2019 Retail Outlook” destaca que 2019 vai ser um ano de transição. Porquê?
Pedro Miguel Silva – As empresas de retalho estão hoje pressionadas por três grandes fatores externos: mudança rápida das preferências dos consumidores ao nível do produto, mas também da experiência de compra em que é vendido e do escrutínio dado às práticas das empresas que o vendem; pressão sobre os custos operacionais – em particular de “sourcing”, rendas e mão-de-obra –, que coloca continuamente desafios à viabilidade de um modelo operativo tradicionalmente assente numa rede de lojas físicas; e crescimento da concorrência de “pure players” digitais, como a Amazon ou a Alibaba, que trazem modelos de geração de receita e fontes de vantagem competitiva inteiramente distintos.
Nos últimos anos, os retalhistas tradicionais têm tido oportunidade de adaptar-se às mudanças de contexto, e muitos têm-no feito, beneficiando de operarem em economias maioritariamente expansionistas que favorecem o crescimento e o consumo.
Uma potencial desaceleração económica, nos próximos anos, poderá testar a efetividade e sustentabilidade dessa adaptação.
GC – De que modo têm os retalhistas de se posicionar para enfrentar a onda de mudança que se avizinha? Que tipo de cenários devem equacionar?
PMS – Primeiro, e mais importante de tudo, será revisitar o seu propósito de atuação no mercado. Qual a sua razão de existir, que significado devem aspirar ter na vida dos consumidores e que valores partilhados manter?
Em seguida, revisitar a jornada do cliente, da consideração ao pagamento, de forma a dar-lhe as opções, conteúdos e serviços que melhor aderem ao seu perfil de consumo e aos valores da marca.
Deverão, também, rever o papel da loja física, transformando-a de um local de comércio num destino de lazer e experiência, onde se cria contacto humano e uma ligação emocional com o consumidor, e um centro de serviços de suporte à jornada do cliente, em complemento e coerência com os canais escolhidos por cada consumidor.
Reconfigurar também os espaços e modelos de trabalho (gigs, crowdsourcing, cobots), reinventando funções e desenvolvendo novas competências, mais orientadas para o serviço ao cliente e para a tomada de decisão.
Por último, será necessário também reduzir, de forma continuada e estrutural, o “cost-to-serve”, mantendo estruturas e operações cada vez mais “lean”. Uma proporção cada vez maior de tarefas hoje executadas por humanos, seja nas operações, logística ou back-office, pode ser automatizada.
GC – Onde são mais visíveis as consequências do crescente empoderamento do consumidor?
PMS – Se queremos perceber para onde irá evoluir o retalho, a China é o mercado a estudar. A forma como a Alibaba e a Tencent conseguiram estender a sua presença para servir todos os canais e momentos de interação com o consumidor é notável. As suas plataformas e soluções tecnológicas são hoje usadas por todos os modelos e formatos de retalho, da venda online ao comércio de rua, proporcionando aos consumidores uma experiência conveniente e sem fricção, o que não ainda tem paralelo no ocidente.
GC – A conveniência vai ser efetivamente o próximo gatilho de crescimento do retalho moderno? Como é que os retalhistas conseguirão colocar esse argumento a seu favor e, consequentemente, potenciar vendas?
PMS – Se há algo que define a estratégia de expansão física do retalho, nos últimos anos, é a aposta em formatos de conveniência e proximidade, não só no retalho alimentar, mas também em cadeias de eletrónica e até casa e decoração, procurando maximizar a capilaridade e proximidade do consumidor.
O consumidor atual pretende desfrutar o tempo livre nos seus próprios termos e é cada vez mais adverso a despender mais tempo do que o necessário em atos de consumo. Esta procura por conveniência vai hoje para lá da oferta de lojas de proximidade, com a “entrada” na casa do consumidor de mais ofertas e serviços.
GC – O estudo indica que, para se manterem competitivos, muitos retalhistas mudaram a sua estratégia de investimento nos últimos 10 a 20 anos. Que investimentos têm vindo a ser privilegiados? A expansão através da abertura de lojas deixou de estar no topo das prioridades?
PMS – A penetração da distribuição moderna em Portugal, medida pela proporção entre área de venda e população, ainda é menor que a média europeia. Existe, por isso, ainda algum potencial de crescimento de lojas físicas, em particular, dentro e à volta dos centros urbanos fora de Lisboa e Porto.
Sendo o contributo marginal de novas lojas significativamente inferior ao das melhores localizações já tomadas, é natural ver os retalhistas explorar modelos de expansão que passem mais pela articulação dos espaços existentes com outros canais, em particular, o online, e novos modelos de serviço.
Em mercados mais maduros, como o Reino Unido e os Estados Unidos, por exemplo, existe uma efetiva saturação de lojas físicas que conduzirá a mais encerramentos.
GC – O apocalipse do retalho é um mito ou uma realidade?
PMS – Claramente um mito. O retalho é um sector em permanente evolução, surgindo todos os anos novos formatos, novas tecnologias e novas soluções para servir um consumidor cada vez mais exigente e difícil de fidelizar.
Fazer mais do mesmo parece ser a única opção sem futuro. Nas palavras recentes de um artigo da Forbes, “Physical retail isn’t dead. Boring retail is”.
GC – No cenário atual, de que modo podem os retalhistas diferenciar-se?
PMS – As vantagens competitivas tradicionais de localização, escala, produto e preço vêm-se esbatendo face a novos modelos de entrega de valor suportados em tecnologias digitais. Para se manterem relevantes, os retalhistas têm de produzir experiências de consumo distintivas, personalizadas e consistentes com os seus valores de marca. Se não conseguirem envolver e entusiasmar o consumidor, vencerá sempre o preço mais baixo.
GC – Está-se na era da ultra personalização?
PMS – No ano passado, aquando da celebração de uma parceria com a Chanel, o CEO da Farfetch, José Neves, enquadrou a urgência da personalização no retalho da forma que acho mais lúcida. Dizia ele que plataformas digitais como o Instagram ou a WeChat, na China, estão a educar os consumidores no que é uma verdadeira experiência personalizada, mas, depois, entramos numa loja física e parece que estamos de volta aos anos 90. Nenhuma empresa a operar em sectores de consumo – seja o retalho, turismo, mobilidade ou outros – é hoje sustentável sem elevadas capacidades de personalização.
GC – De que modo as cadeias de abastecimento deverão, também elas, se adaptar para enfrentar a transição a caminho?
PMS – Além do desafio do omnicanal, que obriga as empresas a rever ativos e redes de distribuição, existe também uma pressão grande sobre as cadeias de abastecimento para serem mais transparentes e sustentáveis, evitando riscos reputacionais e criando confiança na mente de um consumidor mais consciente.
Alguns dos desafios mais prementes que se colocam à cadeia de abastecimento incluem maior flexibilidade para gerir, sem custos incrementais, múltiplas opções de entrega e serviço; transparência relativamente à proveniência dos artigos e sustentabilidade social e ambiental da cadeia de valor; maior capilaridade na distribuição, transferindo carga de circuitos de distribuição primária para entregas diretas ao consumidor final; e compatibilizar todos os desafios anteriores com uma cada vez maior competitividade de custo.
GC – Qual será o segredo para sobreviver e vencer em 2019?
PMS – Não penso que exista uma fórmula mágica que sirva a todos. Cabe a cada empresa encontrar o caminho que sirva os seus consumidores, reforce os seus valores de marca e alavanque as suas fontes de vantagem competitiva.
Este artigo foi publicado na edição n.º 56 da Grande Consumo.