“Estamos no tempo da verdade, que é dada por auditorias e certificações”

Ana Isabel Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde

Ana Isabel Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, lidera uma organização que, há mais de duas décadas, transforma a forma como Portugal gere os resíduos de embalagens e navega os complexos desafios da reciclagem. Com uma visão que alia pragmatismo e inovação, destaca a importância de um sector mais transparente e eficiente, capaz de envolver consumidores, indústrias e políticas públicas num compromisso comum. Em tempos de maior rigor ambiental e sanções por incumprimento, a líder da Sociedade Ponto Verde defende uma abordagem onde o compromisso e a adaptação das indústrias à economia circular são essenciais. Nesta entrevista, revela os principais desafios e oportunidades para o futuro da reciclagem em Portugal, numa perspetiva que reflete a sua paixão pelo progresso sustentável e pela criação de valor real para o país.

Grande Consumo – Portugal nunca cumpriu as metas da União Europeia para reciclagem. Considerando esta lacuna, quais são as falhas estruturais mais graves que identifica? É uma questão de falta de educação ambiental, de políticas públicas inadequadas ou de falta de cooperação entre os diferentes intervenientes do sector? Esta questão tem uma explicação simples ou nem por isso?

Ana Isabel Trigo Morais – A explicação é tudo menos simples, até porque o tema também é complexo, e reside na combinação de todos os fatores enumerados. De facto, Portugal nunca cumpriu as metas de reciclagem dos resíduos urbanos, pese embora tenha cumprido as metas de reciclagem das embalagens. Resíduos urbanos são todo o tipo de resíduos que descartamos no dia-a-dia. Existem muitos fluxos para além das embalagens.

O país fez uma transição importante na gestão dos resíduos urbanos quando se encerraram as lixeiras, nos anos 1990, o que representou uma grande transformação. Criou-se o sistema de reciclagem das embalagens e cobriu-se o país de ecopontos, pelo que houve uma aceleração. Mas, passados 27 anos da Sociedade Ponto Verde gerir o fluxo de reciclagem das embalagens, vemos diferentes velocidades de evolução nos vários agentes desta cadeia de valor. Isso representa um problema adicional, embora, do meu ponto de vista, já pudesse estar muito mais resolvido. Estamos na cadeia de valor do grande consumo, situando-nos no pós-consumo. Mas essa divisão entre consumo e pós-consumo já não faz sentido. Temos uma cadeia de valor do consumo em que a reciclagem das embalagens e de tudo aquilo que dá origem a resíduos volta a entrar no consumo.

Se houve anos em que houve acelerações e se introduziu muito nível de serviço às populações, claramente, há 10 anos que se vive o inverso e o país não cumpre as metas de reciclagem, à exceção das embalagens.

 

GC – A que se deve esta desaceleração?

AITM – Tal se deve ao facto de este ser um sector que exige investimentos em vários pontos da cadeia, desde logo no consumidor. É preciso causar mais impacto para o consumidor mudar o seu comportamento. Ora, temos como ferramentas de impacto, sobretudo, a conveniência em serviço e a educação, literacia e sensibilização ambiental. Para ter eficiência na questão dos resíduos urbanos e melhorar a reciclagem de embalagens, tem de se investir mais no serviço e na conveniência. Não é só expandir as redes de ecopontos, até porque o país não tem muita necessidade de mais ecopontos. Em contrapartida, precisa de os relocalizar e desenhar sistemas mais adaptados às características do território. Numas áreas passa pelos ecopontos, noutras pelas recolhas porta a porta e noutras por outras soluções. E convém ter também em mente que recolher resíduos que têm origem em casa dos consumidores finais é diferente de recolher resíduos de embalagem provenientes do canal Horeca, que no fundo estão a ser servidos pelo mesmo tipo de processo e de infraestrutura. Portanto, é preciso maior nível de serviço e de conveniência, para que o consumidor não se afaste da prática do gesto da reciclagem. Os sistemas de deposição de embalagens devem acompanhar as rotas das vidas das pessoas, ao invés de um serviço praticamente indiferenciado e estandardizado.

Com todo o respeito pelas autoridades do território, como as juntas de freguesia e as câmaras municipais, para cumprir as metas de reciclagem, atualmente situadas nos 55% – e que se vão elevar para 65% -, precisamos de trazer outros modelos, outros atores e outros concorrentes para a cadeia de valor. Isto devia causar um alerta. Senão, vamos continuar a ter resultados que não correspondem à nossa ambição. No fundo, estamos também a falar de um bocadinho de falta de ambição, nos últimos 10 anos, enquanto país e de políticas públicas, na área dos resíduos e economia circular. Fomo-nos atrasando e nunca mais recuperámos.

 

“Assim como defendo uma estabilização dos quadros jurídicos e normativos, considero que é preciso não haver tantas modas na sustentabilidade. Ora é economia circular, ora é ESG, ora ODS. As transformações nestas matérias não se fazem de um ano para o outro, às vezes nem numa década. É preciso dar tempo e continuar a dar atenção à agenda política dos ODS, que continua a fazer muito sentido. Há muito por fazer e priorizar. Defendo muito a complementaridade das normas”, detalha a CEO da Sociedade Ponto Verde

 

GC – Com o agravamento das sanções por incumprimento de metas ambientais, como é que a Sociedade Ponto Verde antecipa que estas pressões possam impactar o mercado português? O que falta para uma verdadeira transformação?

AITM – Prefiro discutir qual é a melhor tecnologia e a melhor inovação para cumprir as metas de reciclagem e tornar o país um exemplo de economia circular, sobretudo nas embalagens, que é responsabilidade da Sociedade Ponto Verde, do que andar a discutir reservas territoriais de serviço público. É mais útil para o país fazermos a discussão de uma forma diferente.

Percebo o papel que historicamente os municípios têm desempenhado. São fundamentais para a qualidade de vida dos portugueses, mas tem de haver uma outra “camada” adicional, abrindo o sector à concorrência. Quando estudamos os países que têm melhor desempenho ambiental no que diz respeito à reciclagem das embalagens e dos resíduos urbanos, vemos uma dinâmica de abertura a operadores privados ou até semiprivados que vêm acrescentar eficiência e desempenho.

A transformação deste sector é cara. É preciso fazer grandes investimentos. A concorrência vai acelerá-los, para não estarmos sempre dependentes das mesmas ferramentas e programas. Precisamos de desenhar conjuntamente um quadro em que todos possamos fazer mais e melhor.

 

“A transformação deste sector é cara. É preciso fazer grandes investimentos. A concorrência vai acelerá-los, para não estarmos sempre dependentes das mesmas ferramentas e programas. Precisamos de desenhar conjuntamente um quadro em que todos possamos fazer mais e melhor”

 

GC – Como é que estão a envolver indústrias e retalho para desenvolver soluções de “packaging” mais sustentáveis e reduzir o volume de resíduos desde a origem? Existem parcerias específicas com marcas ou cadeias de retalho?

AITM – Vivemos num ambiente muito regulado, a nível europeu. Temos uma legislação “chapéu” para todos os Estados-membros, sendo que, às vezes, o “chapéu” é-nos mais ou menos apertado. Essa regulação tem vindo a robustecer-se, visando também as empresas embaladoras e que utilizam embalagem para levar os seus produtos ao consumidor. Até me parece bastante bem que a Europa tenha tomado este conjunto de medidas para orientar toda esta cadeia de valor no mesmo sentido, para se conseguir ter uma atividade com indicadores importantes de sustentabilidade.

Mas se calhar vale a pena relembrar o que é este conceito. Trata-se de uma forma de transformação do negócio que permite que as empresas continuem a servir os consumidores equilibrando as necessidades destes com a proteção dos recursos ambientais. Estamos sempre a falar de equilíbrios e estes podem chamar-se escassez, falta de matérias-primas ou impactos ambientais que vão, a prazo, transformar a qualidade de vida.

As empresas embaladoras estão muito empenhadas. São obrigações de “compliance”, que vêm da regulação. São empresas auditadas, têm os seus indicadores e, portanto, desse ponto de vista, todas querem cumprir o melhor possível com a regulação, evitando o “greenwashing”. Estando a viver o pós-diretiva dos plásticos de uso único, o quadro sancionatório para as empresas tem vindo a crescer, assim como as penalizações para os Estados que não cumprem. E são também os consumidores que estão a pagar os incumprimentos todos. Quando digo que a estratégia da Sociedade Ponto Verde é uma estratégia de zero embalagens no aterro, é para chamar a atenção que não só estamos a perder valor ambiental, como também estamos a perder valor económico e não estamos a impactar o comportamento do consumidor.

Temos cerca de 8.200 clientes de diferentes dimensões. Mais de cinco mil são muito pequenas empresas e microempresas, um universo muito grande, que reflete a realidade do país. É preciso tomar um conjunto de medidas para transformar o modelo de consumo e isso começa nas empresas que usam a embalagem. Temos vindo a desenvolver, ao longo dos últimos seis anos, um conjunto de ferramentas para medir a circularidade, temos os nossos guias práticos para a sustentabilidade, criámos o Ponto Verde Lab, que é, no fundo, uma área de serviços de inovação aplicada à realidade das embalagens e dos nossos clientes.

Temos de resolver dois problemas complicados nesta cadeia de valor: reduzir a quantidade de materiais extraídos à natureza, o que significa incorporar mais material reciclado, e reduzir a quantidade de materiais utilizados – e gosto sempre de dar o exemplo das garrafas de água, que têm vindo a diminuir drasticamente a quantidade de plástico –, por um lado, e abraçar novos modelos e formatos de consumo, como, por exemplo, a venda a granel, onde a intensidade de utilização da embalagem é menor, por outro. A partir de 2026, vai entrar em vigor o regime de eco modulação, em que as embalagens vão pagar um custo maior ou menor quanto menos ou mais amigas da reciclagem forem. Acredita-se que, como a cadeia de valor é orientada para a eficiência, vai procurar a embalagem que tiver menos pegada ambiental.

Hoje, a indústria de grande consumo tem uma grande responsabilidade, não só na utilização da melhor tecnologia, daquilo que a ciência tem trazido ultimamente, mas também de transformar os hábitos de consumo, dada a sua proximidade ao consumidor. Estamos no tempo da verdade, que é dada por auditorias e esquemas de certificação. A garantia que se dá ao consumidor é cada vez mais importante.

 

GC – Tem havido debates sobre o uso de tecnologias como o “blockchain” para rastrear os materiais recicláveis, oferecendo maior transparência ao consumidor. Qual é a posição da Sociedade Ponto Verde em relação a estas tecnologias? Já estão a ser integradas?

AITM – Da mesma forma que o código de barras veio transformar e impactar a cadeia do grande consumo há 50 anos, terá de ser adotado um mecanismo de rastreabilidade no sector das embalagens, até 2030. O passaporte digital dos produtos vai ser outra revolução no consumo, mas com uma extensão maior, porque se trata da relação com o elo final da cadeia, o consumidor. Isso trará a este elo final não só a possibilidade de conhecer profundamente a embalagem, o que pode fazer com ela, de onde veio, e levá-la para o momento pós-consumo. A embalagem não sofreu um “downgrade” a partir do momento em que virou resíduo, pelo contrário. O “upgrade” será a sua valorização.

Aí temos o digital a funcionar. Vamos ter sensores óticos que vão reconhecer todo o tipo de embalagens e que as encaminham para o local certo. A tecnologia vai evoluir imenso, o que potenciará uma revolução no grande consumo.

Tudo isto trará muita transparência à relação com um consumidor que, também ele, se está a transformar muito nas suas exigências. A relação com as marcas, no que diz respeito à sustentabilidade, é cada vez mais exigente e intensa, o que tem obrigado até a uma adaptação da comunicação daquelas, que apostam em termos como “reciclado” ou “reciclável”. Hoje, não há nenhuma embalagem que não tenha incorporada a mensagem “Recicle-me”.

Uma das ferramentas que lançámos este ano chama-se Pack4Sustain, para criar embalagens circulares por natureza. O objetivo é, precisamente, dar às empresas uma ferramenta para avaliarem a sua embalagem e verem até que ponto é circular, analisarem o perigo de risco marinho e classificarem-na, sendo esta classificação visível para o consumidor. Isto é a Sociedade Ponto Verde a acompanhar os seus clientes nesta jornada de verdade e transparência com o consumidor.

 

“Hoje, a indústria de grande consumo tem uma grande responsabilidade, não só na utilização da melhor tecnologia, daquilo que a ciência tem trazido ultimamente, mas também de transformar os hábitos de consumo, dada a sua proximidade ao consumidor. Estamos no tempo da verdade, que é dada por auditorias e esquemas de certificação. A garantia que se dá ao consumidor é cada vez mais importante”

 

GC – Com os avanços tecnológicos e mudanças no comportamento do consumidor, qual será o papel da Sociedade Ponto Verde daqui a 20 anos? A gestão de resíduos será ainda uma questão tão central, ou prevê que o foco passe para a eliminação de resíduos na fonte? Para que modelo de negócio se irá evoluir?

AITM – Tenho uma grande crença que, daqui a 20 anos, a Sociedade Ponto Verde continuará a servir o mercado do grande consumo, mas, talvez, de uma forma bastante diferente da de hoje. Atualmente, a nossa visão estratégica de longo prazo, discutida e aprovada pelos acionistas, coloca a inovação no nosso “core business”. Hoje, como daqui a 20 anos, somos os aceleradores dessa inovação.

Porém, vejo que teremos embalagens completamente diferentes, muito mais recircularização nos vários canais de venda, uma cadeia de valor completamente distinta, digitalizada e com muita informação disponível para o consumidor, que já não olha para a reciclagem como um esforço, mas como algo natural.

O consumidor vai ter muito mais conveniência e serviço. Acredito muito num cenário em que, se quiser descartar os meus resíduos, posso chamar alguém para os vir buscar ou posso colocá-los no ecoponto. Temos de criar um portefólio de serviços para o consumidor que permita essa facilitação.

Vejo ainda um consumidor muito mais consciente do valor económico dos resíduos. O consumidor vai sentir na sua carteira o incentivo económico para ajustar o seu comportamento.

 

GC – A Ana tem liderado a Sociedade Ponto Verde numa altura de grandes desafios ambientais. Que visão pessoal tem do caminho até aqui? Podemos falar de legado? Quais são, afinal, as maiores ambições pessoais e profissionais enquanto líder no sector da sustentabilidade?

AITM – A Sociedade Ponto Verde é uma “casa” com uma enorme história. Está muito agradecida aos portugueses por levarem o país a cumprir as metas de reciclagem das embalagens, com exceção do vidro. Pertenço a uma pequena parte da história desta “casa”, pelo que tenho muita dificuldade em falar de legado. Vejo-o mais como uma entrega de resultados aos portugueses, aos acionistas e à equipa.

Do que realmente gosto é de juntar saberes e pessoas para chegar a objetivos. Uso muito a minha curiosidade intelectual e a criatividade nos instrumentos de gestão e normativos para os alcançar.

Dos últimos seis anos, destaco a licença que obtivemos e que se vai prolongar até 2034. Conseguimos desenhar um quadro de atuação mais estável, que nos permite cumprir melhor os nossos objetivos.

Há uma sensação de dever cumprido, ao ver que o caminho em que nos colocámos está a fazer as suas etapas.

 

A nossa visão estratégica coloca a inovação no nosso ‘core business’. Hoje, como daqui a 20 anos, somos os aceleradores dessa inovação

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 89 da Grande Consumo.

Por Carina Rodrigues

Responsável pela redacção da revista e site Grande Consumo.

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