Discutir a relação entre o retalho alimentar e a democracia pode parecer, à primeira vista, um exercício algo excêntrico — quase como comparar a liberdade de expressão com o preço das batatas. Mas a verdade é que supermercados e hipermercados são, muitas vezes, espelhos sociais onde se refletem conquistas políticas, económicas e culturais. A questão que se coloca é: será que o retalho moderno é filho da democracia ou, pelo contrário, a necessidade de um comércio mais aberto e eficiente contribuiu para a abertura democrática? O dilema do ovo e da galinha em versão prateleira de supermercado.
O retalho como termómetro da liberdade
Não há democracia sem escolhas e não há supermercado sem prateleiras cheias de opções. A lógica é parecida: votar é escolher entre partidos, tal como encher o carrinho é escolher entre marcas de leite. Num regime fechado, a diversidade tende a ser ilusória: a escolha resume-se, muitas vezes, a uma marca única e oficial. Basta recordar os países de economia planificada na antiga União Soviética e na Europa de Leste, onde o consumidor enfrentava longas filas para bens básicos e os conceitos de “promoção” ou “variedade” eram praticamente inexistentes.
Por outro lado, o florescimento de cadeias de retalho organizado parece exigir uma sociedade minimamente aberta e competitiva. Não há retalho sem pluralismo político e sem liberdade de iniciativa. Mas será mesmo assim em todos os casos?
Portugal: do cravo ao carrinho de compras
Em Portugal, o 25 de Abril de 1974 abriu as portas não só à democracia, mas também ao consumo moderno. Antes da Revolução, o comércio alimentar era dominado por mercearias de bairro e mercados municipais. O Pão de Açúcar, fundado em 1970 em Lisboa, foi uma raridade, um sinal tímido de modernização inspirado em modelos estrangeiros. Contudo, foi no pós-Revolução que o sector disparou: a liberalização económica e a abertura às importações permitiram o crescimento de redes como o Pingo Doce (1980) e, mais tarde, o Continente (1985), que introduziu em Portugal a lógica do hipermercado.
Estes novos espaços não eram apenas locais para comprar produtos; eram símbolos de modernidade, de pertença a um mundo europeu e democrático. Comprar iogurtes de várias marcas, escolher entre detergentes nacionais e estrangeiros ou encontrar frutas “exóticas” tornavam-se uma experiência quase política: a liberdade de escolha era também a liberdade de ser consumidor.
O impacto foi profundo. Em poucas décadas, as mercearias tradicionais perderam terreno, substituídas por espaços de consumo organizados. Se nas décadas de 1960 e 70 ainda se comprava fiado no balcão da mercearia, nos anos 80 e 90 a lógica do carrinho de compras tomou conta da vida urbana. Essa transformação alterou não só hábitos de consumo, mas também o quotidiano: as idas em família ao hipermercado ao fim de semana tornaram-se um ritual quase tão comum como o almoço de domingo.
O retalho trouxe também uma nova relação com a ideia de abundância. Nas prateleiras dos hipermercados e supermercados, o consumidor português descobriu que havia dezenas de marcas de bolachas, várias opções de massa ou até iogurtes de sabores improváveis. Essa abundância não era apenas económica, era também simbólica: depois de décadas de ditadura, a democracia chegava também à mesa.
O crescimento do sector foi notório. Entre 1980 e 1990, o volume de negócios do comércio a retalho cresceu cerca de 70%. Na década de 1990, Portugal assistiu à consolidação dos hipermercados e supermercados como principais pontos de compra, ao mesmo tempo que se expandia a classe média e aumentava o poder de compra.
Outro aspeto relevante foi o impacto regional. Se nas grandes cidades o retalho moderno se impôs rapidamente, no interior o processo foi mais lento, mas acabou por transformar radicalmente as economias locais. Muitos concelhos passaram a ter grandes superfícies que não só alteraram os hábitos de compra como criaram empregos, trouxeram novos modelos de gestão e mudaram o urbanismo com parques de estacionamento e centros comerciais.
Por fim, não podemos esquecer a dimensão cultural: os supermercados tornaram-se locais de socialização. Comprar não era apenas satisfazer necessidades básicas, era também passear, comparar preços, descobrir novidades e até — em alguns casos — encontrar amigos e vizinhos. Em Portugal democrático, o ato de encher o carrinho converteu-se numa metáfora prática de cidadania.
Alemanha: a democracia do desconto
Se Portugal ilustra o “retalho depois da liberdade”, a Alemanha do pós-guerra mostra outra faceta: a reconstrução económica que usou o retalho como ferramenta de igualdade social. No imediato pós-1945, o país vivia em ruínas, mas foi precisamente nesse contexto que nasceram os famosos discounts. O Aldi, fundado pelos irmãos Albrecht nos anos 40, e o Lidl, surgido nos anos 70, democratizaram o acesso ao consumo através de preços baixos e simplicidade operacional.
Aqui, mais do que consequência direta da democracia, o retalho ajudou a cimentar o modelo social democrático alemão. O Wirtschaftswunder — o “milagre económico” — não teria sido o mesmo sem o acesso massificado a bens de consumo e o retalho de desconto desempenhou um papel central nesse processo. Nesse caso, poderíamos dizer que o ovo foi o retalho e a galinha a consolidação da democracia de mercado.
Espanha: do franquismo à modernidade
O caso espanhol também é revelador. Durante o franquismo, a economia encontrava-se controlada e o consumo era limitado. O retalho moderno só começou a florescer após a morte de Franco, em 1975, coincidindo com a transição democrática. Supermercados como a Mercadona (fundada em 1977) cresceram numa sociedade que se abria política e culturalmente.
Tal como em Portugal, a democracia foi a condição que permitiu a modernização do retalho. Espanha descobriu que fazer fila no supermercado podia ser, paradoxalmente, uma celebração de liberdade: variedade de escolha, horários mais flexíveis e a entrada de multinacionais como o Carrefour, símbolo da integração europeia e global.
Estatísticas que falam
Alguns números ajudam a perceber o fenómeno:
• Portugal: em 1974, praticamente não existiam hipermercados. Em 1990, já havia mais de 30 grandes superfícies. Hoje, Portugal tem uma das maiores densidades de supermercados per capita da União Europeia.
• Alemanha: o Aldi e o Lidl, juntos, controlam mais de 40% do mercado alimentar alemão, reflexo de um modelo de consumo democrático e acessível.
• Espanha: a Mercadona representa cerca de 25% do mercado alimentar espanhol, tornando-se não apenas líder económico, mas também símbolo da democratização do consumo.
Quem nasceu primeiro?
No fim de contas, talvez a resposta seja menos linear do que gostaríamos. Em contextos como Portugal e Espanha, a democracia abriu as portas ao retalho moderno, simbolizando a integração numa economia de mercado e numa cultura de liberdade de escolha. Na Alemanha, o retalho ajudou a cimentar a democracia social através de preços acessíveis e consumo massificado.
Talvez o dilema do ovo e da galinha não tenha resposta definitiva. Mas uma coisa é certa: cada ida ao supermercado é também um ato político, mesmo que inconsciente. Ao escolher entre as diferentes lojas e cadeias, o cidadão-consumidor reafirma a sua liberdade. A democracia, afinal, também se constrói na secção das frutas e legumes.
