A Dory Consumidora: uma estória de pandemias e apagões

Armando Mateus, Chief Experience Officer da TouchPoint Consulting International
Armando Mateus, Chief Experience Officer da TouchPoint Consulting International

Lembram-se da Dory? Aquele peixe azul que ajudou o pai do Nemo a percorrer o oceano para o encontrar quando ele ia a caminho da escola e acabou num aquário? Já nem me lembrava dela, quando a voltei a encontrar, por toda a Península Ibérica, no dia do apagão. Passados cinco anos da última vez que a vi, durante a pandemia, lá estava ela, em enormes cardumes, nas filas à porta dos supermercados.

Quando a Pixar lançou, em 2003, esta personagem no filme “À Procura de Nemo”, nunca pensei que este peixe cirurgião-patela azul que sofre de perda de memória recente fosse tão boa representação daquilo que somos enquanto consumidores, no que de pior e mais egoísta pode existir. É que, ao contrário do filme, onde a nossa Dory se esquece e a ninguém prejudica, esta Dory Consumidora que vimos durante a Covid-19, e que agora regressou por um dia, não é a personagem engraçada e tonta que achamos divertida. Esta é uma personagem mais sombria que nada à velocidade de um tubarão e que tudo devora, para rapidamente regurgitar.

 

Fenómeno global

Quando, há cinco anos, fomos surpreendidos pela pandemia, um fenómeno global e que poucos tinham idade para se recordar da anterior crise mundial, vivemos momentos únicos que conduziram a um pânico imediato e a uma corrida às lojas, com o consequente açambarcamento, do qual se destaca o absurdo caso do papel higiénico.

Com o fim oficial da emergência global de Covid-19, a Dory Sábia logo se apressou a analisar e declarar que as lições tinham sido aprendidas, que nada seria igual e que estávamos todos preparados para a próxima crise. A Dory Opositora logo veio a terreiro declarar que teria feito muito melhor que a Dory Ministra e a Dory Ministra declarou que, face às circunstâncias, ninguém podia ter feito melhor, que os cardumes eram agora mais fortes e resistentes aos vorazes tubarões, mas que iria nomear uma comissão técnica para estudar tudo em profundidade e tirar lições para o futuro. E logo os cardumes aplaudiram de pé, junto com as restantes criaturas marítimas, tal como no final do filme quando, de volta para casa no recife de coral, Marlin (pai do Nemo) e Dory observam Nemo a ir para a escola.

Ao longo de três anos, as Dorys viveram felizes consigo próprias, superando ondulações provocadas pela inflação, escaparam aos dentes dos tubarões das subidas das taxas de juro e fugiram às picadas das anémonas de uma guerra na Europa e de uma crise logística mundial. E, de cada vez que que superavam um novo obstáculo, diziam “tudo vai ficar bem, somos agora mais fortes”.

Mas será que é mesmo assim, que tudo ficou bem e que a tal perda de memória recente tinha sido superada e fazia parte do passado?

 

Apagão

E eis que chegamos às 11:33 do dia 28 de abril de 2025 em Portugal, 12:33 no lado espanhol do lago ibérico. As luzes que iluminavam o aquário desligam-se, os muros erguem-se e os cardumes deixam de conseguir nadar livremente, os peixes-balão perdem-se nos caminhos e as águas começam a ser tomadas por sombras de vorazes tubarões. E logo a Dory Consumidora se esquece das lições do passado e corre na direção dos supermercados e lojas, para se abastecer de água, pão, enlatados e… papel higiénico… outra vez o mais essencial dos produtos à sobrevivência humana, aquele produto que ninguém pode dispensar e que está sempre presente nas séries de zombies pós-apocalípticas… Ou não!

Sem se lembrar que o seu estômago é pequenino e não tem onde guardar tanta água, a Dory Consumidora compra dezenas e dezenas de litros, como se fosse um camelo! Esquecendo que é um peixe e que vive numa caverna T1 no fundo do mar, apressa-se a acumular latas de comida que não tem onde guardar e que poluem o oceano. Esquecendo que o pão e as rochas têm muitas semelhanças ao fim de alguns dias, decide construir montanhas de pão nos carrinhos de compras. Mas há algo de que não se esquece, não sabe porquê, mas sabe que o fundamental é ter papel higiénico, já que, ainda recentemente, deixou acabar o stock que tinha em casa desde o fim da Covid-19. Para quem se lembra do filme, o papel higiénico é como a morada “PSherman 42 Wallaby Way, Sydney, NSW” que a Dory encontrou na máscara do mergulhador, a sua única memória.

E qual foi a formação favorita do cardume de Dorys Consumidoras para se proteger desta ameaça do “apagão final”, que colocou em perigo de extinção a espécie? Um misto entre uma fila indiana (nas lojas) e o nadar cada um para seu lado, na esperança de que o tubarão comesse outra Dory antes, aquelas que não conseguiram abastecer-se de todos estes produtos porque, quando lá chegaram, já as mais espertas das Dorys açambarcadoras tinham tudo levado.

 

Perda de memória recente

Mas era mesmo preciso? Ou foi um problema de perda de memória recente? Cada vez menos acredito na frase esbatida de que “o consumidor tem sempre razão” e que, na verdade, a Dory Consumidora sofre de amnésia anterógrada, uma doença séria e real que é caracterizada pela inabilidade de formar novas memórias, sendo causada por um dano no hipocampo, podendo igualmente afetar as memórias passadas. Isso porque o hipocampo é importante para transformar a memória de curto prazo em memória de longo prazo, porém, com esta condição, não há o armazenamento das informações e das experiências anteriores. Só assim se explica que, passados três anos, se tenham esquecido as lições aprendidas durante a pandemia, que não se avalie a situação com lógica, se acredite nos rumores que circulavam dando como certas fábulas internetianas ou que se decida ser egoísta ao ponto de prejudicar o próximo. Tal como a Dory do Nemo sabe que o importante é continuar a nadar, a Dory Consumidora só sabe que o importante é continuar a comprar e açambarcar. Mas atenção, a Dory Consumidora é mais esperta e sabe que, depois de acumular, pode ir de volta no dia seguinte e devolver… nem que, para isso, tenha de passar horas e horas em filas…

 

Eleições para líder do cardume

E, no fim de tudo isto, o que dizem a Dory Opositora e a Dory Ministra? Num movimento nunca visto ou pensado, num momento em que se preparam as eleições para líder do cardume, a Dory Opositora apressa-se a dizer que a Dory Ministra não fez o suficiente, para logo de seguida a Dory Ministra se apressar a dizer que foi um evento único, que ninguém podia ter feito melhor e que a solução está na criatura blackstart e que, espante-se, vai nomear uma comissão técnica. Sim, uma comissão técnica, que vai investigar e recomendar, para logo nada se fazer. É que a perda de memória curta não é só algo de que sofre a Dory Consumidora, mas também é um problema da Dory Opositora, que se esquece de quem desligou as fontes térmicas que aqueciam o oceano que agora é aquecido pelo sol e pelo hidrogénio, como se nada fosse preciso mudar na infraestrutura. Igualmente, a Dory Ministra parece sofrer de amnésia anterógrada, já que se esqueceu de falar com o resto do cardume durante mais de dez horas, ou melhor, fê-lo através duma forma de comunicação chamada televisão a quem ninguém tinha acesso… E esqueceu-se que não havia peixes-polícia suficientes e que havia de reserva outros peixes que ficaram nos seus quarteis sem nada para fazer.

Agora que, dizem, foi superada com sucesso mais uma crise, o importante é que voltámos todos a acreditar que aprendemos a lição, vamos estudar tudo em profundidade com muitas comissões técnicas e que “tudo vai ficar bem, somos agora mais fortes”.

Os povos ibéricos comportaram-se de forma exemplar e disciplinada, aproveitando um dia de sol, como se não houvesse memória, como se tudo fosse um acontecimento esporádico e irrepetível. Não fosse a Dory Consumidora e o dia 28 de abril de 2025 iria perder-se na memória.

É caso para perguntar, não haverá um pouco de Dory em todos nós, pronta para continuar a nadar sempre que algo de novo acontece? Até à próxima vez…

 

Este artigo foi publicado originalmente na edição N.º 92 da Grande Consumo.

 

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