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Uma investigação conduzida pelo Centro Comum de Investigação (JRC) da Comissão Europeia revelou um cenário preocupante no mercado europeu de especiarias: mais de dois terços da canela à venda nos retalhistas da UE apresentam sinais de fraude, incumprimento da legislação alimentar ou potenciais riscos para a saúde. O estudo analisou 104 amostras recolhidas em 10 países da União Europeia, bem como no Reino Unido, Sérvia e Sri Lanka, e concluiu que 66% não cumpriam as normas internacionais de qualidade, infringiam a legislação comunitária ou excediam os limites legais de substâncias tóxicas.
O relatório surge no âmbito dos esforços da Comissão para combater a fraude no sector das ervas e especiarias — um mercado em forte crescimento e cada vez mais apetecível para práticas ilegais. Em 2023, a canela foi a quinta especiaria mais importada pela UE, a seguir ao gengibre, paprika, pimenta e curcuma.
Substituição e adulteração: as principais fraudes detetadas
A análise científica, baseada em quatro métodos inovadores desenvolvidos pelo JRC, foi além da já conhecida prática de substituir canela do Ceilão (Cinnamomum verum ou Cinnamomum zeylanicum Blume) — mais valiosa e aromática, originária do Sri Lanka — pela sua versão mais barata, cassia (Cinnamomum cassia ou Cinnamomum aromaticum), com sabor mais intenso e menor qualidade.
Os resultados mostram que cerca de 9% das amostras rotuladas como “Ceylon” eram, total ou parcialmente, cassia disfarçada, configurando fraude direta ao consumidor. A investigação também detetou outras formas de adulteração, como a substituição da casca — a parte tradicionalmente usada — por outras partes da árvore da canela, incluindo raízes, folhas e flores, com menor valor comercial e qualidade inferior.
Riscos à saúde: chumbo e cumarina acima dos limites
Para além da fraude comercial, o estudo revelou sérios riscos à saúde pública. Cerca de 9,6% das amostras ultrapassaram o limite legal de chumbo (2 mg/kg) definido pela legislação alimentar europeia. Mais grave ainda, 31 das amostras analisadas apresentaram níveis perigosos de cumarina, um composto natural presente na cassia que pode ser tóxico para o fígado — sobretudo em crianças — quando ingerido em grandes quantidades.
Outro dado preocupante foi a deteção de teores elevados de cinzas totais em cerca de 21% das amostras, um indicador de contaminação ou adulteração com substâncias não alimentares.
Falhas estruturais e necessidade de reforço nos controlos
O estudo salienta que as irregularidades detetadas são variadas e complexas, o que dificulta a sua deteção com métodos analíticos convencionais. Por isso, os cientistas recomendam a adoção de técnicas combinadas de rastreio e confirmação por parte dos laboratórios de controlo oficiais, para garantir análises mais precisas e eficazes.
“A diversidade de práticas fraudulentas no mercado da canela mostra que não basta um único método de controlo”, refere o relatório. “É urgente desenvolver e aplicar metodologias padronizadas e reforçar a vigilância ao longo de toda a cadeia de abastecimento”.
Consumidor em risco
O crescente interesse dos consumidores europeus por produtos naturais e funcionais tem alimentado a procura de especiarias como a canela, o que, por sua vez, aumenta o risco de fraude. O facto de muitas embalagens serem rotuladas apenas como “canela” — sem especificar a origem ou variedade — facilita práticas enganosas e confunde os consumidores.
Os investigadores defendem que os resultados obtidos devem servir de base para definir novos limiares de referência para componentes específicos da canela e para estabelecer critérios claros para identificar produtos suspeitos. Tal permitiria intensificar a vigilância e permitir às autoridades atuar de forma mais eficaz.
Com a procura de canela a crescer na Europa e um histórico de adulteração difícil de detetar, o estudo do JRC é um alerta claro para produtores, distribuidores e autoridades de controlo: a fraude alimentar continua a ser um desafio significativo para a segurança dos consumidores e a integridade do mercado europeu.
A Comissão Europeia sublinha que é necessária cooperação estreita entre legisladores, laboratórios e indústria para garantir a rastreabilidade, transparência e conformidade em toda a cadeia de valor. Caso contrário, o risco de que produtos adulterados e potencialmente perigosos continuem a chegar às prateleiras europeias permanecerá elevado.
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