“O agroalimentar tornou-se uma questão estratégica. É mesmo considerado como uma arma política”

Horacio González Alemán, professor na San Telmo Business School
Horacio González Alemán, professor na San Telmo Business School

A cadeia agroalimentar é cada vez mais geoestratégica, devido à guerra da Ucrânia. Aliás, pode mesmo ser considera uma arma política, sustenta Horacio González Alemán. O professor na San Telmo Business School esteve recentemente em Lisboa, a convite da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares, para uma reflexão sobre temas chave atuais, como a alimentação e a saúde, a sustentabilidade, a alteração dos hábitos do consumidor, a conotação negativa sem base científica associada a determinados alimentos e o impacto destes fatores no dinamismo da cadeia de valor agroalimentar. Um dos homens-fortes do agroalimentar em Espanha, a Grande Consumo teve a oportunidade de conversar com Horacio González Alemán sobre os desafios e oportunidades na cadeia de valor agroalimentar em tempos de inflação, precisamente o tema que serviu de mote para a conferência da FIPA.

 

Grande Consumo – Como definiria as principais características da economia pós-Covid? O que mudou em relação a antes, o que permaneceu o mesmo e o que ganhou importância nos negócios, na economia e no consumo?

Horacio González AlemánTudo mudou depois da pandemia. O reposicionamento da economia teve um preço elevado em termos de abastecimento, produção e distribuição de produtos básicos para os consumidores e o sector agroalimentar é um bom exemplo disso. Além disso, a invasão da Ucrânia provocou uma inflação mais elevada e mais incerteza para as nossas economias. Resumidamente, um bom currículo seria “adeus planos, olá cenários”.

 

GC – Como é que todas estas mudanças moldaram, ou não, uma nova faceta da cadeia de valor agroalimentar?

HGAA primeira coisa é que o agroalimentar se tornou uma questão estratégica. É mesmo considerado como uma arma política, como no caso da Ucrânia.

Em segundo lugar, percebemos que as cadeias de valor globais são importantes e um facto não só para a indústria automóvel, mas também para as cadeias alimentares.

Em terceiro lugar, no futuro próximo, temos de estar preparados para evitar mais crises – escassez, ruturas nas cadeias, etc.

 

GC – Embora as perspetivas de uma recessão global em 2023 estejam a esbater-se, mantém-se, no entanto, um cenário de inflação que já levou ao aperto das políticas monetárias dos bancos centrais, com aumentos acentuados das taxas de juro. Estes aumentos manter-se-ão, pelo menos, durante o primeiro semestre do ano. Então, como analisa o panorama atual e as perspetivas para este ano, a nível económico e geopolítico?

HGAA inflação levará algum tempo a descer: os preços agrícolas continuarão elevados, afetando assim os preços dos alimentos. Os preços da energia vão descer, mas um cenário geopolítico instável não ajudará a reduzir a inflação. E os efeitos das alterações climáticas na produção agrícola serão também um fator negativo. Um panorama complexo, diria. 

 

Trabalhador embalando tomates maduros de videira vermelha na linha de produção em uma fábrica de processamento de alimentos
Imagem Shutterstock

 

GC – Na sua opinião, quais são os riscos macroeconómicos mais importantes que têm maior probabilidade de ocorrer nos próximos dois a três anos? Particularmente para o sector agroalimentar e toda a sua cadeia de valor, quais são os mais críticos?

HGANo caso da Europa, problemas geopolíticos, uma mudança radical nas políticas agrícolas, devido a alterações legislativas que impõem restrições de sustentabilidade e relacionadas com o clima.

 

GC – Considerando que a perspetiva é de que as economias emergentes podem ter um desempenho melhor do que as avançadas, o cenário atual pode dar lugar a novos equilíbrios?

HGANa minha opinião, não, são bastante dependentes das economias desenvolvidas e tudo o que está interligado – interdependência é a palavra-chave.

 

GC – Quais são os desafios e oportunidades que a cadeia de abastecimento agroalimentar enfrenta atualmente? Como converter desafios em oportunidades?

HGAO primeiro, e mais importante, é a necessidade de alimentar um mundo em crescimento. Serão mais consumidores e também terão novas necessidades e isso é uma boa notícia.

A tecnologia e a ciência devem – e podem – ajudar nesse sentido, mas a reação social contra ambas deve ser amenizada antes.

Uma nova ordem mundial, em que estamos a entrar, torna mais difícil explorar todas as oportunidades, e esta é a má notícia.

 

“Não há margem sem serviço. As pessoas, nos mercados desenvolvidos, querem experiências mais do que comida como tal e as experiências são, principalmente, intangíveis, portanto, um serviço”

 

GC – Considerando que a atual geração de gestores nunca geriu em clima de inflação, o que deve acautelar? O que muda e como se reinventa a gestão?

HGAO controlo de custos torna-se fundamental, neste período, assim como a necessidade de abrir cenários para o futuro, tentando construir soluções alternativas para manter o negócio a funcionar. Contenção é “a” palavra.

 

GC – A ausência de certezas, como a que temos vivido nos últimos três anos, a velocidade acelerada com que nos movemos, a volatilidade e a instabilidade são alguns dos elementos que podem pôr em causa a liderança nas organizações. Como devem os gestores responder num contexto de incerteza?

HGANa minha opinião, devem estar mais atentos a temas não relacionados com o mercado. Tradicionalmente, as empresas têm vivido num modelo de negócios em que cuidam, principalmente, do ambiente de mercado – consumidores, concorrentes, fornecedores. Mas o que a realidade nos mostrou, nos últimos três anos, é que os problemas vieram basicamente do ambiente externo ao mercado. Os negócios devem ser geridos com uma abordagem mais estratégica.

 

GC – As agroindústrias, em geral, estão a conseguir adaptar-se para responder ao contexto de mudança e às necessidades dos consumidores?

HGAEstão, sem dúvida. A concorrência é feroz e as necessidades, sentimentos e crenças dos consumidores são mais seguidos do que nunca. Eles são realmente o rei.

 

GC – O que caracteriza os modelos de negócio de empresas líderes que podem servir de lições e inspiração para outras empresas do sector?

HGAEstratégia, investimento em tecnologia e ciência para melhorar a sua eficiência, abraçando as necessidades dos consumidores, e visão de longo prazo. 

 

GC – O cliente quer sempre mais serviço. Como lidar com estas exigências, numa altura em que os custos estão a aumentar e as margens estão a diminuir? Onde deve estar o foco, no serviço ou nas margens?

HGANão há margem sem serviço. As pessoas, nos mercados desenvolvidos, querem experiências mais do que comida como tal e as experiências são, principalmente, intangíveis, portanto, um serviço. 

 

GC – Mais do que nunca, o relacionamento com o cliente é um fator crítico? É cada vez mais importante gerar valor partilhado?

HGAA relação com o cliente deve ser uma forma de interagir com o cliente, de o envolver e ligá-lo à nossa empresa, às marcas e aos valores. Este é realmente um valor partilhado. 

 

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Imagem Shutterstock

 

GC – Qual a principal dificuldade que o sector do agronegócio enfrenta hoje para entregar valor agregado ao consumidor?

HGANa minha opinião, é muito difícil entregar esse valor agregado sem considerar a moderna distribuição. É claro que a tecnologia está a mudar e a Internet abre caminho a novas oportunidades para os produtores, mas ainda há um caminho a percorrer.

Entretanto, cooperação com a distribuição – e o canal Horeca – é fundamental para dar uma oferta de valor acrescentado ao consumidor.

 

GC – A terceira revolução industrial foi digital, enquanto a quarta é uma fusão entre tecnologias, robótica, inteligência artificial, blockchain, computação quântica, etc. Que papel desempenha a tecnologia para tornar as empresas agroalimentares mais resilientes?

HGACrítico. É fundamental, como a ciência. De facto, é a alavanca para chegar a este sector sustentável que os políticos exigem, mas precisamos de convencer esta parte da sociedade que rejeita qualquer progresso.

 

GC – É um mito que essas tecnologias estejam apenas ao alcance de grandes corporações? É sobretudo uma questão de mentalidade?

HGANão é preciso criar tecnologia ou ciência, pode-se adquirir e adaptar-se. Não é necessário recorrer a engenharia aeroespacial. É mais uma questão de “mindset” e perceber que, no final, se trata de investir para reduzir custos, melhorar a gestão do negócio e melhor servir os consumidores.

 

“A opinião é a tendência predominante, não a ciência. As redes sociais estão a confundir os consumidores sobre os perigos reais dos alimentos e ingredientes, o que está a prejudicar fortemente a imagem do sector e a sua confiança. Precisamos de ser mais vocais e explicar a realidade por detrás da produção de alimentos, desmontando notícias falsas e preconceitos. E isso deve ser feito pelos próprios representantes do sector, com o apoio de governos e cientistas”

GC – Como podem os governos contribuir para a competitividade do sector agroalimentar? O que têm feito, mas o que é fundamental e mais urgente fazer?

HGAPrincipalmente, apoiar e melhorar, mais do que controlar; a carga regulamentar no sector é demasiado elevada, diria mais até do que no sector farmacêutico.

Não serem tão rigorosos na aplicação da agenda da sustentabilidade, precisamos de análises de impacto sólidas, evidências baseadas na ciência para políticas, tempo e investimento. Não queremos que esta mudança não ocorra, mas tem de ser feita de forma adequada.

 

GC – A reputação corporativa e os riscos a ela associados são um aspeto crítico a considerar de forma consistente, em empresas onde a confiança é um fator chave, como as do sector agroalimentar. Como é que o sector enfrenta este desafio?

HGAO problema, neste caso, é que a opinião é a tendência predominante, não a ciência. As redes sociais estão a confundir os consumidores sobre os perigos reais dos alimentos e ingredientes, o que está a prejudicar fortemente a imagem do sector e a sua confiança. Precisamos de ser mais vocais e explicar a realidade por detrás da produção de alimentos, desmontando notícias falsas e preconceitos. E isso deve ser feito pelos próprios representantes do sector, com o apoio de governos e cientistas. 

 

GC – A sustentabilidade tornou-se um elemento competitivo para as empresas?

HGASem dúvida. Se não investir na sustentabilidade, mais cedo ou mais tarde, ficará fora do mercado, devido ao novo quadro jurídico que é esperado ou diretamente pelos concorrentes.

 

GC – Quais são os desafios envolvidos na gestão de pessoas em ambientes voláteis? O colaborador tornou-se um verdadeiro cliente interno?

HGAOs colaboradores são um ativo fundamental para as empresas e serão mais no futuro. Esta é a razão pela qual se deve investir neles e alimentar sua lealdade e compromisso com a empresa. Mas isso não pode ser dado como certo, é um investimento e leva tempo. 

 

Este artigo foi publicado na edição N.º 80 da Grande Consumo

 

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Por Bruno Farias

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