A saúde entrou definitivamente para a lista das grandes forças que moldam o consumo em Portugal. Mas, ao contrário do que muitas vezes se pensa, essa mudança não se traduz apenas em dietas, suplementos ou produtos “fit”. O estudo “Who Cares? Who Does? Health 2025” da Worldpanel by Numerator mostra que estamos perante uma transformação mais profunda, que passa por preocupações concretas dos consumidores, mudanças geracionais e uma reorganização do cabaz doméstico, com impacto direto no retalho, incluindo o comércio de proximidade.
O estudo “Who Cares? Who Does? Health 2025”, da Worldpanel by Numerator, revela uma transformação silenciosa, mas profunda, no comportamento do consumidor português. Entre intenções e ações nem sempre coerentes, cresce a procura por produtos que equilibrem saúde, sabor, conveniência e confiança. Da redução do açúcar ao afastamento do álcool, passando pela ascensão dos produtos funcionais, dos probióticos e das alternativas 0.0, o retalho enfrenta um consumidor que já não compra apenas por hábito, mas por propósito, ainda que esse propósito se manifeste de formas complexas e nem sempre lineares.
A primeira evidência relevante é a distância entre aquilo que o consumidor declara e aquilo que realmente compra. Um número elevado de portugueses afirma querer reduzir o açúcar, mas os dados de compra mostram que, na prática, os gastos com categorias indulgentes — chocolate, doces, pastas para barrar e gelados — aumentam mesmo entre os consumidores que dizem querer moderar a ingestão de açúcar.
Esta contradição não traduz incoerência; traduz realismo. Ao aprofundar a análise dentro das categorias, o estudo mostra que os consumidores não estão a abandonar o prazer, mas a redefini-lo. No caso das tabletes de chocolate, os segmentos sem açúcar, de baixo teor ou com stevia ganham expressão, aumentando 4,8 pontos percentuais (p.p.) em penetração, enquanto as versões tradicionais com açúcar perdem 1,7 pontos percentuais. O preço médio pago por estes segmentos “mais saudáveis” é 12% superior ao da categoria, sinalizando que o consumidor está disposto a pagar mais para equilibrar prazer e consciência.
Esta mudança interna ilustra uma verdade fundamental: a saúde já não opera à margem do consumo indulgente. O consumidor está a migrar para versões de melhor perfil nutricional dentro das mesmas categorias que sempre consumiu e o retalho deve acompanhar esta transição, onde o sabor continua a ser determinante, mas já não é suficiente.
Peso, sono e stress: o novo tripé das preocupações dos portugueses
As preocupações dos consumidores ajudam a explicar estas mudanças. Em Portugal, o peso surge como inquietação dominante para 55% da população, seguido do sono (47%) e do stress (44%), índices muito acima da média global — entre 120 e 142 face ao total mundial.
Esta tríade reflete um país em pressão constante, onde corpo e mente se tornam prioridades crescentes. Do lado das marcas e do retalho, isto traduz-se numa procura mais forte por soluções que respondam a necessidades concretas: mais proteína, menos açúcar, benefícios funcionais, conveniência saudável, formatos individuais que apoiem rotinas diárias fragmentadas e uma maior atenção ao equilíbrio emocional e físico.
Entre aqueles que afirmam querer reduzir o açúcar — e Portugal (37%) está acima da média global (24%) nessa preocupação de redução —, observa-se uma maior afinidade por categorias como leite de curta duração, bebidas vegetais, iogurtes e sobremesas proteicas, aveia, barras energéticas e compotas com menos açúcar, todas elas a ganhar relevância na evolução do cabaz. Trata-se de um consumidor que, mesmo mantendo hábitos tradicionais, incorpora novas lógicas de equilíbrio.
A ascensão silenciosa da alimentação “menos processada”
A questão dos alimentos ultraprocessados tem vindo a ganhar destaque globalmente e Portugal não é exceção. O estudo indica que 53% dos portugueses planeia reduzir o consumo destes produtos, posicionando o país acima da média global. Curiosamente, cerca de 20% dos inquiridos afirma não consumir ultraprocessados — algo praticamente impossível — o que evidencia um desafio persistente de literacia alimentar.
Apesar da confusão concetual, a tendência é clara: o consumidor quer aproximar-se de padrões alimentares mais “naturais”, mesmo quando não altera a sua rotina de conveniência. A elevada prevalência de refeições caseiras reforça este padrão: 80% dos portugueses diz preferir cozinhar com produtos frescos e 84% das refeições principais dentro de casa continua a ser pratos caseiros, centrados em sopas, arroz, legumes cozidos, massas, saladas e carnes simples.
O retalho encontra aqui uma oportunidade inequívoca. A frescura continua a ser o principal motor de confiança do consumidor, não apenas por tradição culinária, mas porque se inscreve no novo ideal de alimentação “real”, com menos ingredientes e mais perceção de autenticidade. A procura por conveniência não desaparece, mas passa a coexistir com a exigência de naturalidade.

Um país que bebe menos álcool e descobre novas alternativas
A relação dos consumidores com o álcool está também a sofrer alterações significativas, impulsionadas pela saúde, pela moderação e por transformações nas dinâmicas sociais. Em Portugal, 16% dos consumidores planeia reduzir o consumo de álcool e esse número sobe para 18% entre os menores de 35 anos, ao mesmo tempo que 45% desta faixa etária afirma não consumir álcool de todo. Esta mudança traduz-se já num recuo das ocasiões reais de consumo de bebidas alcoólicas, tanto dentro de casa (–0,5 p.p.) como fora de casa (–5,7 p.p.).
Em contrapartida, a cerveja sem álcool vive um crescimento expressivo: conquistou mais 144 mil compradores, aumentou 24% em frequência e já representa 8% de penetração fora de casa. As campanhas das principais marcas — assentes na ideia de “sabor de sempre, sem desculpas” — reforçam a normalização deste tipo de consumo e expandem as ocasiões em que a categoria pode estar presente.
Do ponto de vista do retalho, esta tendência implica diversificação. A categoria 0.0 deixa de ser residual e passa a constituir uma resposta relevante para consumidores jovens, para quem moderação e convívio não são incompatíveis.
Probióticos, suplementos e bebidas funcionais: a nova fronteira do consumo alimentar
Outra área em crescimento acelerado é a dos suplementos alimentares e dos produtos funcionais. Portugal destaca-se pela forte afinidade com suplementos de reforço imunitário: 67% considera-os um bom investimento para a saúde, acima da média global. Embora exista ceticismo noutros mercados europeus, o consumidor português valoriza soluções que prometem benefícios claros, sobretudo quando integradas no dia a dia.
A evolução dos dados de compra confirma esta tendência. A penetração de iogurtes probióticos (como bifidus e kefir) aumentou de 42% para 47% em apenas um ano e categorias como vitaminas, bebidas funcionais, iogurtes proteicos, produtos enriquecidos com vitamina D, snacks proteicos ou chás com propriedades relaxantes estão em crescimento contínuo no país. A saúde, aqui, não é um conceito abstrato. É funcional, mensurável e integrada na rotina.

O impacto das terapias injetáveis para perda de peso: um novo consumidor em emergência
A crescente notoriedade da medicação injetável para perda de peso — como Ozempic ou Mounjaro — está a introduzir novas dinâmicas de consumo no sector,e Portugal destaca-se pela elevada familiaridade com estes produtos, com um índice 108 acima da média europeia.
O estudo mostra que os utilizadores destas medicações apresentam maior afinidade com categorias percecionadas como saudáveis e práticas — sopas refrigeradas, bebidas desportivas e isotónicas, bebidas vegetais, sobremesas proteicas e adoçantes — caracterizadas por conveniência e baixa carga calórica. Nos mercados onde este fenómeno está mais avançado, como o Brasil, observa-se ainda uma tendência para a redução da intensidade da cesta, com menor frequência de compra e menor volume por ocasião em categorias indulgentes, como refrigerantes e chocolate, evidenciando mudanças estruturais que poderão replicar-se no mercado português.
A médio prazo, isto pode reconfigurar o cabaz, favorecendo categorias leves, funcionais e com foco no bem-estar.
O retalho num ponto de viragem
O conjunto de evidências do “Who Cares? Who Does? Health 2025” revela que o consumidor português está num momento de transição entre hábitos tradicionais e novas expectativas de bem-estar. O retalho encontra-se numa posição estratégica para responder a estas mudanças, integrando inovação, clareza nutricional, frescura e conveniência saudável.
A saúde, enquanto força transversal, deixou de ser um nicho. É hoje um dos principais motores das escolhas alimentares, influenciando produtos, formatos, comunicação, categorias e experiências de compra. O retalho que conseguir acompanhar esta transformação — sem ceder ao alarmismo, mas também sem ignorar os sinais — estará mais bem posicionado para captar valor num mercado que se reinventa através das escolhas de um consumidor mais informado, mais consciente e mais exigente.



