“Se alguma coisa aprendi, nestes 20 anos, é que é impossível prever as dinâmicas do retalho”

Ana Paula Barbosa, retailer services director da Nielsen IQ
Ana Paula Barbosa, retailer services director da Nielsen IQ, considera que se tivesse de escolher uma palavra para caracterizar a evolução dos últimos 20 anos seria a de “transformação”

Ao longo dos últimos 20 anos, o retalho e o consumo em Portugal foram marcados pela transformação constante e pela capacidade de adaptação — tanto das insígnias, face a crises e mudanças tecnológicas, como dos consumidores, cada vez mais informados e exigentes. Numa conversa reveladora com Ana Paula Barbosa, retailer services director da Nielsen IQ, refletimos sobre estas duas décadas de evolução. Da crise de 2008 à revolução digital, passando pelo impacto da pandemia e pelo papel crescente das redes sociais, às tendências que irão moldar o futuro.

 

A Nielsen IQ tem acompanhado a evolução do consumo e do retalho, ao longo destas duas décadas. Se tivéssemos de definir os últimos 20 anos numa palavra, qual seria?

Se tivesse de eleger uma palavra para caracterizar a evolução nestes 20 anos, seria a de “transformação”. Mas gostaria também de salientar a capacidade de adaptação do retalho, não só à evolução do consumidor, como também ao contexto, tal como a capacidade de adaptação do consumidor a este mesmo contexto e às novas ofertas do retalho. O retalho, em particular o alimentar, é dos sectores mais resistentes às crises e, nos últimos 20 anos, isso tem sido muito claro.

 

Em 2005, como era o cenário do consumo e do retalho em Portugal? Que características marcavam esse período?

Em 2005, estávamos num contexto em que o formato hipermercado estava a entrar numa fase de decréscimo, digamos assim. É verdade que, em 1997, tinha havido uma mudança na legislação que restringiu muitas aberturas de lojas com mais de dois mil metros quadrados. Portanto, o retalho teve de se adaptar e começaram a abrir lojas até 1.999 metros quadrados, para poderem estar abertas ao domingo de tarde. Naquela altura, lojas de dimensões superiores não o podiam fazer.

A medida tinha por objetivo proteger o comércio tradicional, mas acabou por ser um pouco contraproducente, porque o formato supermercado começou a expandir, adaptou-se e, ao mesmo tempo, apareceram os discounts. Nesse ano de 2005, prevíamos um grande crescimento dos supermercados e dos discounts. Recordo que até fizemos conferências sobre o tema.

Desde então, aprendemos a ter maior ponderação nas previsões. Se alguma coisa aprendi, nestes 20 anos, é que é impossível prever as dinâmicas do retalho. Somos sempre surpreendidos com a atuação e a oferta retalhistas.

 

Como é que a crise financeira de 2008 impactou os hábitos de consumo e o comportamento dos retalhistas? Que mudanças estruturais surgiram no retalho português após a crise?

A crise de 2008 mudou radicalmente a forma como os consumidores compravam. Recordo que, nessa altura, estávamos com taxas de desemprego na ordem dos 15%, portanto, com uma redução do rendimento significativa e uma retração do consumo evidente.

Por outro lado, até então, a política de expansão das insígnias dava sempre resultados positivos. Qualquer loja nova que abrisse trazia crescimento. A partir de 2008, a lógica mudou. Abrir uma loja nova já não traz um incremento assim tão grande.

Como tal, começou a haver a consciência de que, perante o contexto, é preciso desenvolver mecanismos para fidelizar os clientes. Surgem duas estratégias: uma aposta muito grande na marca própria e no preço baixo, na filosofia every day low price, e uma aposta nas promoções, por outro, numa estratégia mais de high-low, focada nas marcas de fabricante com descontos.

Ao mesmo tempo, também começaram a aparecer os programas de fidelização, para reter os clientes, e deram-se os primeiros passos na personalização das ofertas.

 

“Se tivesse de eleger uma palavra para caracterizar a evolução nestes 20 anos, seria a de ‘transformação’. Mas gostaria também de salientar a capacidade de adaptação do retalho, não só à evolução do consumidor, como também ao contexto, tal como a capacidade de adaptação do consumidor a este mesmo contexto e às novas ofertas do retalho”

 

O crescimento das marcas próprias foi um dos fenómenos mais marcantes nas últimas duas décadas. Como evoluiu esse segmento em Portugal e qual o seu impacto?

As marcas próprias representam hoje mais de 45% das vendas em valor, sendo que em volume essa percentagem é até superior. Mas passaram por várias fases.

Uma das aprendizagens destes 20 anos é que as marcas próprias não são só um fenómeno do consumidor. A verdade é que, a partir de 2008, o retalho passou a oferecer muito mais marca própria, a sua disponibilidade cresceu exponencialmente. Como tal, o consumidor foi atrás da oferta.

Passados alguns anos, houve uma mudança de paradigma e começámos a ter uma escalada promocional, com maior incidência a partir de 2012. E aí também houve uma mudança no comportamento do consumidor, que começou a consumir menos marcas próprias e a mostrar uma maior procura pelas promoções.

Agora, estamos noutra fase. Nos primeiros anos de crescimento das marcas próprias, estas eram muito vistas como cópias das marcas líderes. Hoje, estamos numa fase em que a marca própria tem já um lugar de destaque, é trabalhada como marca e apresenta inovação. Desde 2019 que se assiste a uma lógica completamente diferente.

Ana Paula Barbosa, retailer services director da Nielsen IQ
Convidada a destacar um grande marco do retalho ou do consumo dos últimos 20 anos, a responsável da Nielsen IQ escolhe a pandemia de Covid-19

 

Nas últimas duas décadas, assistimos à saída de algumas insígnias do mercado português, como o Plus e o Carrefour, e à chegada de novos players, como a Mercadona, que entrou com uma estratégia muito particular. O que determina o sucesso ou insucesso de um retalhista?

A palavra-chave é diferenciação. Ficou claro que, mesmo as cadeias que chegaram mais tarde, vingaram porque trouxeram algo diferente.

O caso do Carrefour, que conheço bem, porque foi o meu primeiro emprego, não teve tanto a ver com a falta de diferenciação. É, e era, uma cadeia com um fator de diferenciação que os consumidores apreciavam, mas não se soube expandir no tempo em que o mercado ainda não estava tão maduro e em que cada abertura de loja trazia vendas incrementais. O Carrefour estava muito dependente do formato hipermercado, não entrou no de supermercado como outros fizeram depois da lei de 1997, pelo que acabou por desistir do mercado português, onde não tinha uma posição dominante nem perspetivas de vir a ter. Foi uma decisão estratégica.

Se há algo que devemos reter é que não é porque o mercado está mais ou menos maduro que não há espaço para outros. Qualquer insígnia que venha com um posicionamento diferenciador terá oportunidades para vencer. Mas a capacidade de adaptação também é determinante. Há pouco, referia que, em 2005, apostávamos num crescimento muito grande dos discounts, que não se verificou nessas proporções. Os outros retalhistas souberam reagir, desenvolveram os seus programas de fidelização e apostaram em políticas de every day low price. Cada um foi-se defendendo com as suas armas, marcando o seu território. Os retalhistas precisam de uma identidade, que tem de ser claramente percebida pelo consumidor, e não se devem afastar da mesma em reação a um concorrente.

 

O que mudou no equilíbrio entre hipermercados, supermercados e o comércio de proximidade?

No passado, na Nielsen, fazíamos muitas análises em termos de formatos. O mercado ainda não estava muito maduro. Hoje, pensamos mais em termos de insígnias. Quanto mais diversificada for a oferta, melhor, porque o que vai ditar se o consumidor vai a um ou a outro formato é a sua missão de compra. Há 20 anos, só a localização da loja já era um critério de seleção. Agora não. Tenho à minha volta um hiper, um super, um discount, uma loja de proximidade e, consoante a minha missão de compra, vou eleger um formato diferente.

 

“A crise de 2008 mudou radicalmente a forma como os consumidores compravam. Recordo que, nessa altura, estávamos com taxas de desemprego na ordem dos 15%, portanto, com uma redução do rendimento significativa e uma retração do consumo evidente. Por outro lado, até então, a política de expansão das insígnias dava sempre resultados positivos. Qualquer loja nova que abrisse trazia crescimento. A partir de 2008, a lógica mudou”

 

Como é que o boom do comércio eletrónico influenciou o sector do retalho e quais foram os momentos-chave dessa evolução?

No passado, prevíamos que o e-commerce iria crescer muito. E cresceu, só que não nas áreas alimentares. Vemos o consumidor português a comprar online viagens e bilhetes para concertos, mas na área alimentar não há esta penetração.

Aquando da pandemia, havia a noção de que o e-commerce iria disparar. Mas agora está a estabilizar novamente.

Volto à questão da oferta. A verdade é que não temos muitos mais players do que no passado. É certo que as plataformas agregadoras de entregas vieram mudar um pouco o panorama, mas, em termos de lojas online, nem todos os retalhistas em Portugal as têm. Penso que, quando houver mais players a entrar no e-commerce, este vai ganhar mais importância. Neste momento, ainda é uma importância relativamente baixa, mas faz parte da estratégia dos retalhistas.

 

Como é que o perfil do consumidor português mudou ao longo destes 20 anos?

Há 20 anos, o consumidor estava muito sujeito à oferta e à influência do próprio retalhista na sua decisão de compra. A informação de que dispunha era a que a insígnia lhe passava. Hoje, é muito diferente. Temos um consumidor informado, que procura informação sobre os alimentos, sobre os produtos que vai comprar, procura opiniões e é influenciado pelas redes sociais. E estamos ainda a subestimar a influência que as redes sociais têm em determinadas decisões de compra alimentares. Isto é uma mudança muito significativa na forma do consumidor pensar e que exige adaptação por parte do retalho. O consumidor é um omnishopper, pelo que o retalho tem de estar presente em todos os pontos de contacto que tem com as lojas.

 

Como é que as mudanças na demografia e nos estilos de vida impactaram o consumo, desde a redução do tamanho das famílias até ao envelhecimento da população?

A Nielsen tem um painel lares que permite acompanhar as compras feitas pelas famílias portuguesas, por tipologia de família e por faixas etárias. Gosto muito destas análises, porque mostram padrões de consumo completamente diferentes. Por exemplo, a alimentação saudável preocupa a todos. Só que a alimentação saudável para um jovem de 25 anos não tem nada a ver com alimentação saudável para um sénior de mais 65 anos. Na população mais idosa, vemos muitas compras de frutas, legumes, peixe fresco, carne, tudo muito natural e poucos produtos processados. Nos mais jovens, vamos ver mais produtos vegan ou com proteínas. Esse consumo diferenciado também faz parte da informação que é vital para os retalhistas.

 

“As marcas próprias representam hoje mais de 45% das vendas em valor, sendo que em volume essa percentagem é superior. Mas passaram por várias fases. Uma das aprendizagens destes 20 anos é que as marcas próprias não são só um fenómeno do consumidor. A verdade é que, a partir de 2008, o retalho passou a oferecer muito mais marca própria, a sua disponibilidade cresceu exponencialmente. Como tal, o consumidor foi atrás da oferta”

 

O que aprendemos com a pandemia de Covid-19 sobre a resiliência do sector do retalho e os novos padrões de consumo?

Aprendemos que a capacidade de reagir rapidamente a qualquer mudança no contexto é fundamental. Mostrou que é preciso estar sempre em cima do comportamento do consumidor e tentar antecipar, o mais possível, as mudanças nos hábitos. Foi válido para a pandemia como é agora para a crise inflacionista. Vemos, por exemplo, uma transferência entre consumo dentro de casa e consumo fora de casa, pelo que é essencial perceber esta dinâmica para adaptar a oferta. Com a pandemia, e também com o desenvolvimento do teletrabalho, vieram associados outros comportamentos sobre os quais marcas e insígnias devem refletir.

 

A ascensão da economia circular e da sustentabilidade é uma das grandes mudanças deste período. O consumidor português está realmente mais consciente e exigente nestes temas?

O consumidor português está preocupado e consciente, sim. Mas se isso faz mudar muito o seu comportamento de compra já tenho mais dúvidas. A Nielsen IQ desenvolveu alguns estudos, a nível global – não somos assim tão diferentes dos outros países em relação a sustentabilidade –, que confirmam que, de facto, o consumidor se preocupa. Mas não compra só porque um produto é amigo do ambiente. A compra desse produto tem de estar associada a outro benefício adicional. A preocupação existe, mas não parece ser motivação suficiente. 

 

O impacto da inflação e da guerra na Ucrânia criou novos desafios para o sector. Que mudanças comportamentais emergiram nos consumidores?

O impacto foi efetivo. Até porque, se formos medir a inflação acumulada entre 2020 e 2025, estamos a falar de cerca de 20% de aumento médio nos preços dos produtos de grande consumo. Nesse sentido, em termos de comportamento de consumo, vemos o consumidor a ir mais vezes às compras, mas a manter o gasto médio, apesar da inflação. Revela cautela em relação aos gastos.

A questão é que, passado algum tempo, este comportamento passa a ser um hábito. Vimos o mesmo com a pandemia. Quando um fenómeno dura mais do que um ou dois anos, torna-se um hábito.

 

“No passado, na Nielsen, fazíamos muitas análises em termos de formatos. O mercado ainda não estava muito maduro. Hoje, pensamos mais em termos de insígnias. Quanto mais diversificada for a oferta, melhor, porque o que vai ditar se o consumidor vai a um ou a outro formato é a sua missão de compra”

 

O canal Horeca teve altos e baixos nestes anos, especialmente com a pandemia. Como se reposicionou este segmento?

O canal Horeca está muito mais sujeito ao contexto macroeconómico do que o retalho alimentar. Quando o contexto está desfavorável, este canal ressente-se, ainda que, nos últimos anos, tenha tido a ajuda do turismo.

Nessa medida, existem duas realidades no canal Horeca. Temos os estabelecimentos que beneficiam do turismo e que estão com uma boa dinâmica e aqueles que não estão não estão localizados em zonas turísticas e que passam por uma situação mais complexa, como na crise de 2008.

Paralelamente, o canal Horeca sofre com novas concorrências, como a dos restaurantes que estão a surgir dentro dos hipermercados e a do take-away, que acabam por ser também uma ameaça ao sector, para além do contexto.

 

Quais os desafios que o retalho enfrenta para os próximos anos e como os dados e a inteligência de mercado podem ajudar a antecipá-los?

Na Nielsen IQ, preocupamo-nos em conseguir trabalhar informação proveniente de várias fontes – do retalho e do próprio consumidor – e cruzá-la. Acreditamos que a chave do sucesso é conseguir antecipar o mais possível as decisões de compra, os fatores que as influenciam e o consumo. E torno a insistir no tópico das redes sociais. Quando vejo um tiktoker no Canadá lançar uma receita de uma salada com pepino, que se torna viral, e os pepinos esgotam na Islândia, isso mostra o poder das redes sociais. Temos também destes fenómenos em Portugal, quando muitos retalhistas veem esgotar repentinamente o stock de produtos que nem suspeitavam que pudessem vender tanto. É preciso estar sempre em cima do acontecimento e ajustar, daí a necessidade e a importância da agilidade nas organizações.

Inteligência artificial e redes sociais são duas das tendências globais que irão moldar o consumo, nos próximos cinco anos, juntamente com a tecnologia, que também irá continuar a revolucionar os processos e a experiência de compra.

 

“Quando vejo um tiktoker no Canadá lançar uma receita de uma salada com pepino, que se torna viral, e os pepinos a esgotam na Islândia, isso mostra o poder das redes sociais. Temos também destes fenómenos em Portugal, quando muitos retalhistas veem esgotar repentinamente o stock de produtos que nem suspeitavam que pudessem vender tanto”

 

O consumidor português será mais digital ou mais híbrido, daqui para frente?

Julgo que será um consumidor mais híbrido, sempre com uma grande influência do digital. As lojas físicas continuarão a ter um papel fundamental, já que, em determinadas categorias, é preciso ver e ter contacto com o produto. Inclusivamente, nos estudos que fazemos sobre a Geração Z, observamos que estes consumidores continuam a ir à loja física. Portanto, é importante estar presente em todos estes pontos de contacto.

 

Se tivesse de destacar um grande marco do retalho ou do consumo em Portugal de cada uma destas duas décadas, quais seriam?

Destacaria a crise de 2008, que mudou o comportamento do consumidor e motivou a adaptação do retalho, influenciando estratégias que se revelaram decisivas e estruturais. E destacaria a pandemia, muito marcante na última década, que levou a muitas alterações estruturais e foi um grande catalisador para o mundo como hoje o conhecemos.

 

Veja o vídeo da entrevista:

 

Oiça o podcast:

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição N.º 91 da Grande Consumo

 

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Por Bruno Farias

Diretor na revista Grande Consumo. Um eterno sonhador, um resiliente trabalhador. Pai do Afonso e do José.

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