“O consumidor português quer produto português”

Maria Cândida Marramaque, diretora geral da ANIL
Maria Cândida Marramaque, diretora geral da ANIL

O sector dos lacticínios tem sido fortemente afetado, nos últimos anos, situação esta que se agravou com os aumentos dos custos da energia, os constrangimentos com a cadeia de abastecimento, incluindo os relacionados com o packaging, e ainda o cenário de guerra na Europa. Maria Cândida Marramaque, diretora geral da Associação Nacional dos Produtores de Lacticínios (ANIL), falou com a Grande Consumo sobre o papel dos industriais de lacticínios, que estão, efetivamente, no meio da cadeia, tendo a montante os produtores e a jusante a distribuição. Uma posição que a responsável descreve como “um equilíbrio complicado”, que tem levado a indústria a internalizar custos, ao mesmo tempo que aumenta o custo por litro de leite aos produtores. 

 

Grande Consumo – Que balanço faz da indústria dos lacticínios, em Portugal? Quanto gera a indústria de leite e de produtos lácteos nacional?

Maria Cândida Marramaque – A nossa indústria é dinâmica, atual e tem um elevado grau de modernização. Não é uma das indústrias de ponta, mas, dentro do que é a indústria alimentar, tem um bom grau de modernização. Também em termos tecnológicos, é uma indústria que está muito bem-adaptada e temos os negócios tradicionais já com um elevado grau de especialização. 

Há caminho para fazer, mas a indústria dos lacticínios tem-se adaptado bem aos mercados onde está inserida e consegue compreender bem o consumidor, sendo que, cada vez, apresenta melhor produto e um produto diferenciado. Quando vamos ao linear de um supermercado, conseguimos ver a grande adaptabilidade e a variação de produto existente, que reflete esse entendimento do consumidor, que quer leite gordo, meio gordo ou magro, com lactose ou sem lactose, com mais proteína. Dentro dos queijos, temos uma enorme panóplia, desde para barrar a fundidos. Temos uma indústria que corre atrás do consumidor, que consegue estar à frente, entregando-lhe o produto que deseja. 

A nível de volume de negócios, temos uma indústria que gera 1.460 milhões de euros, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Fomos considerados a terceira indústria mais importante no sector alimentar.  Em termos de organização no território, é uma indústria muito pulverizada, ou seja, muito espalhada por Portugal Continental e ilhas, com 344 empresas dispersas pelo país, que empregam 6.400 pessoas diretamente. A indústria, enquanto elo da cadeia de aprovisionamento, é fundamental não só para manter o tecido produtivo ativo, mas para a fixação das populações nos diferentes territórios. Ou seja, tem um grande impacto não só na produção do leite, mas também onde está inserida, fixando as populações e gerando emprego nessas regiões.

 

GC – A indústria nacional produz um leque variado de produtos lácteos. Em termos de fabrico, quais são os produtos com maior expressão?

MCM – Em Portugal, o produto com maior expressão, em termos de consumidores, é o leite líquido. É o grande produto, sendo que, no ano passado, comercializaram-se 660 toneladas. Depois, temos os leites fermentados, que têm vindo a crescer, por volta das 115 mil toneladas. 

Em termos de queijo, estamos perto das 85 mil toneladas produzidas por ano, com leite de qualquer origem, mas não estou aqui a considerar, por exemplo, os queijos fundidos. Estes são os três produtos-chave. Os outros produtos lácteos também têm alguma expressão, mas não tão significativa.

Dentro dos queijos, o queijo de vaca é o que tem mais expressão. No leite de vaca, temos quase 66 mil toneladas de queijo, enquanto são 11 mil no queijo de ovelha e quatro mil toneladas no queijo de cabra. Por último, temos seis mil de queijo de mistura. 

Embora haja crescimento no queijo com leite de vaca, nas outras categorias, estamos a descer. Isto justifica-se pela indisponibilidade de matéria-prima, ou seja, dos leites de ovelha e de cabra, em que somos muito deficitários em Portugal. Temos de recorrer, por exemplo, ao mercado espanhol para comprar esse leite para poder fabricar. 

 

GC – Como tem vindo a evoluir o consumo de leite e de produtos lácteos junto do consumidor nacional? A concorrência dos produtos vegetais faz-se sentir?

MCM – Qualquer transferência de consumo de um produto lácteo para um vegetal tem de se fazer sentir, se não vierem outros consumidores que façam o consumo na sua vez. 

Em geral, o consumo de leite e de produtos lácteos foi menor. Os portugueses consumiram menos leite líquido e menos leites acidificados, mas consumiram mais queijo, o que é positivo.

O leite líquido está, normalmente, associado a um consumo por populações mais jovens. Com o confinamento, as crianças tiveram menos acesso ao leite escolar e a hotelaria deixou de funcionar. Tudo isso absorve produtos lácteos e faz a diferença no consumo final. O consumo que não se fez fora de casa não se fez totalmente dentro do lar.

Contudo, temos uma recuperação do que é a ingestão láctea através do consumo de queijo, que tem vindo a subir, paulatinamente. Em 2021, consumiram-se 13,7 quilogramas per capita de queijo, ou seja, subimos cerca de 400 gramas por pessoa face a 2020. Se para cada quilo de queijo preciso de 10 litros de leite, este aumento de 400 gramas implica um consumo de leite extra de quatro litros por pessoa. Efetivamente, está-se a fabricar menos leite para consumo, neste momento, porque se está a consumir menos. Mas está-se a fabricar mais queijos e mais iogurtes. 

 

“Temos uma recuperação do que é a ingestão láctea através do consumo de queijo, que tem vindo a subir, paulatinamente. Em 2021, consumiram-se 13,7 quilogramas per capita de queijo, ou seja, subimos cerca de 400 gramas por pessoa face a 2020. Se para cada quilo de queijo preciso de 10 litros de leite, este aumento de 400 gramas implica um consumo de leite extra de quatro litros por pessoa. Efetivamente, está-se a fabricar menos leite para consumo, neste momento, porque se está a consumir menos. Mas está-se a fabricar mais queijos e mais iogurtes”

 

GC – Quais os principais desafios desta indústria? A pandemia amplificou-os?

MCM – O grande desafio é a sustentabilidade da cadeia, ou seja, como vamos viver nestes tempos. Vimos de dois anos atípicos, completamente disfuncionais e que provocaram uma revolução em todos os sectores. Agora, face a esta crise, a recessão e a inflação, como vamos colocar na frente as nossas necessidades, em termos de reter valor na indústria.

Em termos ambientais, estamos preparados para tudo o que vão ser as alterações legislativas impostas pelo Objetivo 55 e pela estratégia Farm to Fork, que têm um impacto grande na indústria e nos obrigam a alterações constantes, por exemplo, nas embalagens. Todas as alterações que se façam agora vão ter um impacto muitíssimo maior pela fragilidade em que nos encontramos. Assim, outro tema é a subsistência da cadeia no cumprimento de todos os requisitos que estão previstos nas agendas europeias e que vão ser traduzidos para Portugal.

Outro desafio é o consumidor, aliado aos temas que estão relacionados com a melhoria da saúde e da nutrição. Trata-se de perceber o consumidor, de trazer inovação com um produto diferente, tendo estes grandes pesos, que são a subsistência, a proteção do meio ambiente e as boas práticas. Ou seja, trazer os requisitos que os consumidores querem ver no produto em sintonia com os cumprimentos das agendas e a sustentabilidade da cadeia.

Enfrentamos desafios sociais – como a falta de mão-de-obra –, desafios económicos, ambientais, financeiros, de qualidade e segurança alimentar, ou seja, de melhoria de incremento de nutrição. Temos um compromisso com a Direção-Geral da Saúde de reformulação dos iogurtes para a redução de açúcar. É um equilíbrio complicado, mas a indústria dos lacticínios, e muitas outras indústrias, está cá para ficar. 

 

GC – Os preços aos produtores nacionais de leite continuam a ser inferiores à média da União Europeia. Também o preço ao consumidor nacional é um dos mais baixos. Como se pode combater esta degradação dos preços?

MCM – Em maio, o preço do leite à produção estava em 38 cêntimos por litro, em Portugal. O nosso leite tem o preço mais baixo da Europa e tem duas componentes: o leite produzido no continente e o produzido nos Açores. Ou seja, o valor referência do leite, que é comunicado à Comissão Europeia, é determinado pelo leite que é produzido em território continental e insular. Da média ponderada dos valores das duas regiões temos o valor que é comunicado.

O valor médio na Comissão Europeia, em maio, estava em 47 cêntimos por litro.

 

GC – Qual tem sido o papel das cadeias da grande distribuição nesta desvalorização? De que forma é que a distribuição pode contribuir para a alteração desta conjuntura e a valorização do leite?

MCM – A distribuição contribuiu pela não aceitação. Ou seja, com franqueza, foi um arrastar, tempos sem fim, desta desvalorização. Em 2015, tínhamos um índice de preços ao consumidor, para leite, queijo e ovos, que andava sempre abaixo dos 100%. Só no início deste ano é que começámos a sentir algum incremento de preço na prateleira, porque efetivamente não era possível, de outra forma, para a indústria.

Se a distribuição não aceita o preço, porque quer manter o produto àquele valor, permitindo que mantenha uma margem mínima, não se valoriza toda a cadeia para trás. Há cadeias de distribuição que, neste momento, têm queijo a 4,99 euros por quilo. Ou seja, sendo que preciso de 10 litros de leite para fabricar um quilograma de queijo, com o leite de 38 cêntimos o litro, o que sobra? Tenho todo o processo produtivo, armazenagem, maturação e transporte, para estar na prateleira a 4,99 euros por quilograma sem exceção.

Este é um trabalho que tem de ser feito pela grande distribuição. Há já alguma aceitação de preço, mas é preciso que essa aceitação seja revista com mais frequência. Vivemos momentos que não nos permitem ter tabelas de preços fixas nem sequer para dois meses. Tem de haver esta necessidade de renegociação, de compromisso da grande distribuição para com a indústria dos lacticínios. É um trabalho que tem de ser continuado. No dia em que não tiver produto cá, vai ter de ir buscar fora e mais caro. E o consumidor português quer produto português. 

Estamos num momento conjunturalmente difícil, mas isto é significativo em todos os momentos. Se deixarmos de ter a indústria a laborar, se deixarmos de ter produção, o consumidor português estará, em breve, a consumir produto que não é feito em Portugal. 

 

GC – Portugal exporta leite e produtos lácteos? O que se pode fazer para facilitar o acesso aos mercados internacionais?

MCM – As nossas trocas são, maioritariamente, com a Europa, apesar de serem também com os países africanos e com continente americano. Exportamos alguns produtos lácteos, mas não somos um país exportador.

Para se facilitar o acesso, só a abertura de mercados não chega, é preciso agilizar processos. É de realçar que não existe uma estratégia delineada, em termos de tutela, de apresentação dos nossos produtos noutros destinos. É certo que vão abrindo, ou que foram abrindo, alguns destinos, mas não existe uma promoção constante dos nossos produtos junto desses mercados. Há muito trabalho a se fazer em termos de missões internacionais para promover os nossos produtos, especialmente neste momento, quando vivemos constrangimentos grandes em termos de disponibilidade de transporte.

 

“Em maio, o preço do leite à produção estava em 38 cêntimos por litro, em Portugal. O nosso leite tem o preço mais baixo da Europa e tem duas componentes: o leite produzido no continente e o produzido nos Açores. Ou seja, o valor referência do leite, que é comunicado à Comissão Europeia, é determinado pelo leite que é produzido em território continental e insular. Da média ponderada dos valores das duas regiões temos o valor que é comunicado. O valor médio na Comissão Europeia, em maio, estava em 47 cêntimos por litro”

 

GC – Já em termos de inovação tecnológica, o sector transformador recorre, cada vez mais, à tecnologia. A transformação digital está a ser trabalhada a nível industrial e de produção?

MCM – Hoje em dia, a automatização dos processos faz-se muito por tecnologia e vamos estando cada vez mais tecnologicamente avançados. Primeiro, em termos da otimização, porque só assim é que vamos libertar valor considerável, com processos cada vez mais otimizados. 

Mas, por outro lado, porque também temos cada vez menos disponibilidade de pessoas. Atualmente, a mão-de-obra é um problema transversal a todas as indústrias. Só com tecnologia e com automatização é que vamos conseguir manter os níveis de rentabilidade. Com certeza que há áreas que nunca vão ficar sem pessoas, mas na parte industrial vamos ter de recorrer a esse tipo de tecnologia e de automatização para fazer face à falta de mão-de-obra.

 

GC – Por outro lado, a sustentabilidade, particularmente ao nível das energias mais limpas, é uma preocupação da indústria?

MCM – A sustentabilidade faz parte de uma agenda europeia que tem de ser cumprida. E, além disso, energias mais limpas fazem cada vez mais sentido. Especialmente neste momento, em que vivemos uma crise energética sem igual, não faria sentido sequer aderir a energias menos limpas. 

Aqui, passarão muito pela instalação de painéis solares e pela utilização da energia eólica. Também seria muito interessante trabalhar na produção de gás a partir de fontes da indústria, ou seja, da utilização do que são os resíduos que são fermentescíveis, que possam ser utilizados para a produção de gás para consumo ou para injetar na rede. 

 

GC – Quais são os principais desafios para o futuro da indústria? E quais as expectativas da ANIL quanto aos próximos anos?

MCM – A subsistência e a sustentabilidade, enquanto cumprimos com as exigências e com os desafios nas áreas políticas impostas pela Comissão Europeia, são os grandes desafios. Um outro desafio é o apoio à evolução das relações ao nível de todos os elos da cadeia. Quer com a produção, quer com a distribuição, quer com todos os parceiros, ou seja, com todos os interlocutores, cumpriremos melhor os nossos desígnios se todas estas relações forem melhores, se todas forem todas bem trabalhadas. 

Em termos de expectativas, espero um sector mais coeso e um consumidor mais esclarecido e mais próximo da indústria. Um dos nossos desígnios é trabalhar muito bem a área da nutrição e elucidar o consumidor, enquanto navegamos neste mar turbulento. Mas também que consumidor valorize o que é o produto nacional, porque precisamos dos consumidores para essa valorização. 

Temos uma curtíssima cadeia de abastecimento e não pode vir de mais perto do que produzir-se leite e produtos lácteos em Portugal. Em termos de produtos lácteos, somos autossuficientes e não podemos perder estes conceitos da nossa fileira e do nosso sector e indústria.

Conseguimos fazer face àquilo que os nossos consumidores necessitam, neste momento, e acredito que conseguiremos passar por este mar de turbulências com a sua ajuda e pela vontade de entregar um produto nacional a todos os portugueses.

Bruno Pereira, administrador de Compras Lidl Portugal

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