“A Vista Alegre e a Bordallo Pinheiro têm um objetivo: tornarem-se uma marca global”

Nuno Barra, administrador com o pelouro do marketing e design de produto da Vista Alegre

A Vista Alegre está, hoje, cada vez mais próxima de ser uma marca de “lifestyle”. A mesma marca que registava perdas a rondar os 18 milhões de euros, em 2009, deixa o epíteto de “tecnicamente falida, mas com muito potencial” para ver o seu melhor primeiro semestre de sempre, em 2019, registando um lucro de 3,71 milhões de euros e conquistando, no mesmo ano, 39 prémios de design internacionais. Em entrevista à Grande Consumo, Nuno Barra, administrador com o pelouro do marketing e design de produto, descreve como a Vista Alegre, que nasceu em 1824, conseguiu reposicionar-se no mercado e sair do vermelho. Após quase 200 anos de existência, esta reviravolta foi mais do que um recuar às origens e à tradição da marca. Tratou-se de um extenso processo de reformulação, que teve por base quatro pilares: atualização da gama de produtos, internacionalização, reposicionamento da marca e uma ligação mais forte aos meios de comunicação.

 

Grande Consumo – Em 2009, quando foi adquirida pelo Grupo Visabeira, a Vista Alegre estava em falência técnica, com prejuízos de 18 milhões de euros. Passados 10 anos, os resultados dos primeiros seis meses de 2019 dão conta de um lucro de 3,71 milhões de euros. Que percurso foi feito nestes 10 anos e que permitiu recuperar a empresa da difícil situação em que se encontrava?

Nuno BarraHouve intervenções em várias áreas. Uma destas foi a área de produto, onde se percebeu que, tanto na Bordallo Pinheiro como na Vista Alegre, havia algum desfasamento entre aquilo que o mercado procurava e aquilo que era o portfólio de produtos. Portanto, houve uma necessidade grande de atualização da gama. Este foi o ponto de partida.

Depois, atuou-se na área da internacionalização, com o reforço das equipas comerciais e a abertura de algumas filiais no estrangeiro, em mercados prioritários. Relativamente à marca, definimos o posicionamento que se pretendia e que deveria claramente assumir o caminho de uma marca de luxo. Houve todo um trabalho não só de reposicionamento da marca, como depois de reorganização dos canais de distribuição. Ou seja, a marca saiu de vários canais, houve necessidade de rever todos os locais onde estava a ser vendida.

A nível de comunicação, também houve uma alteração muito grande sobre a forma como se comunicava e começou-se a apostar muito no digital e na comunicação nas redes, quer a nível nacional, quer a nível internacional.

No fundo, foi atuar nas várias fases: no posicionamento da marca, na definição do produto e na comunicação do produto ao cliente, assim como na distribuição. Adicionalmente, reforçaram-se as equipas comerciais e, na área de produção, também se otimizou o layout, com instrumentos estratégicos, modernizou-se bastante o

forno, porque era um forno com muitas ineficiências e que consumia imensa energia, quer eletricidade, quer gás. Houve um investimento muito grande na reformulação

de todo o chão da fábrica e na reorganização do layout produtivo.

Na Bordallo, a mudança foi ainda mais radical porque implicou um crescimento da capacidade produtiva na ordem dos 60%, há cerca de dois anos.

 

GC – Voltando a 2009, qual era, no vosso entender, o principal problema enfrentado na altura pela Vista Alegre e que justificava a situação delicada em que se encontrava?

NBTodas estas variáveis, em conjunto, criavam alguma dificuldade, mas um dos pontos importantes era a desadequação do produto para o mercado. Na altura, o produto ainda era, quase exclusivamente, clássico, um clássico que algum mercado ainda continuava a valorizar, como valoriza hoje, mas muitos segmentos de mercado distanciaram-se da marca e a esta saiu do radar de muitos consumidores. Mesmo as gerações mais novas conheciam a marca e tinham referências, até por relações familiares, mas não eram consumidores da marca. Não iam às lojas.

De facto, o produto estava desadequado, as lojas estavam desadequadas: tinham uma imagem e um layout nada atrativos e estavam muito fora do que são as exigências do retalho dos dias de hoje. Por isso, remodelámos as lojas todas. Criámos “flagship stores” e remodelámos a rede toda com um conceito de loja novo, mais aberto e mais contemporâneo, com as regras da distribuição atual.

Depois, fizemos a revisão dos canais de distribuição, que na altura não transmitiam a ideia correta da marca, porque esta estava em todo o lado: nos supermercados, nas papelarias ao lado do jornal.

 

GC – Como se consegue uma recuperação desta ordem, e a inevitável redução de custos, sem recorrer a despedimentos?

NB – Uma das coisas que se discutiu, logo de início, foi que existia a possibilidade de reduzir o número de pessoas, que têm um peso tremendo nos resultados. Mas, depois de uma análise, considerou-se que os problemas não tinham muito a ver com a estrutura em si e, sim, com ineficiências. Uma vez que havia esta conjugação de produto e distribuição que não estava a funcionar, acreditou-se que, quando tudo se invertesse, íamos precisar das pessoas. Pessoas que têm um know-how e uma ligação afetiva grande, que é uma das coisas que a Vista Alegre tem de muito valioso. Há gerações e gerações de pessoas que trabalham naquela fábrica e existe uma ligação emocional muito forte da fábrica com a região, que se perpetua. Em cima disso, o conhecimento técnico que eles têm é, de facto, único e é o que lhes permite fazer estas peças.

Há algumas marcas, de nível mundial, onde esta ligação existe, mas, na maior parte delas, foi-se perdendo, porque deslocaram a produção para a Ásia. Mantemos a produção toda em Portugal. Não quisemos reduzir pessoas, porque isso significava reduzir a capacidade de produção, perder know-how que depois vamos precisar, mais à frente, e criar na região, do ponto de vista social, alguma convulsão quando existe esta relação afetiva. Não faz muito sentido.

 

GC – A internacionalização tem sido um dos importantes vetores de crescimento da marca, respondendo por 74% do volume de negócios da empresa. Em quantos mercados está hoje presente e quais aqueles que são considerados estratégicos?

NB – A Vista Alegre, hoje em dia, vende para mais de 70 países de várias formas. Para mercados que não são prioritários, através de exportação simples, ou seja, diretamente a distribuidores ou a outros clientes. Nos prioritários, criamos filiais, onde existe uma estrutura e faz-se a gestão do próprio mercado. Acontece assim em Espanha, França, Estados Unidos da América e Brasil e, mais recentemente, Índia, México e Itália. Entre os mercados prioritários, Espanha é o maior mercado fora de Portugal.

 

GC – E o mercado interno? Tem ainda potencial de crescimento? Por que vias?

NB – Portugal continua a ser o mercado mais importante, com 37%. O mercado interno tem crescido todos os anos. Desde 2011 que tem vindo sempre a crescer, nos vários canais: nas lojas, no retalho, na hotelaria. O mercado nacional ainda tem bastante potencial de crescimento. Há canais que têm mais potencial do que outros, mas, no geral, o mercado ainda dá sinal de que tem potencial para crescer. A hotelaria, por exemplo, é uma das áreas que tem esse potencial, quer em Portugal, quer no estrangeiro.

 

GC – Como é que a modernidade se equilibra com a tradição, quer ao nível das coleções, quer dos processos produtivos? Tem sido esta modernização da capacidade produtiva um dos motivos da boa performance operacional da empresa?

NB – Um dos grandes desafios destas marcas – não só a Vista Alegre, mas qualquer marca com tradição – é como é que se mantém fiel à sua tradição, mas modernizando-se. Se só se mantiver fiel à sua tradição, acaba por morrer, fica desadequada do mercado. Mas também não pode ir só atrás do mercado, porque perde a identidade e torna-se uma marca sem alma e, também, sujeita à oscilação da moda. Esta tipologia de marcas obriga a que o desenvolvimento de produto seja bastante equilibrado. Ou seja, tem de se saber muito bem o que é a marca, o que é que pode e não pode fazer. Por outro lado, desenvolvemos produtos nas duas áreas: produto clássico e produto contemporâneo.

A originalidade do mercado, hoje em dia, é que começa a ser muito difícil identificar um perfil de um cliente clássico de um cliente contemporâneo. Num momento de consumo, é clássico e, noutro momento de consumo, é contemporâneo. Ao princípio, tínhamos algum receio que os clientes mais clássicos olhassem para estes novos produtos com alguma desconfiança e, no entanto, hoje em dia, são um segmento importante das vendas de produtos contemporâneos.

É preciso fazer-se um desenvolvimento de produto equilibrado e dentro daquilo que é a essência da marca. Este é o ponto crítico. Para a produção, por vezes, é um desafio, porque há peças contemporâneas que são muito complicadas. É um desafio constante, mas isso é bom, porque vai alargando os limites da marca.

A Vista Alegre, nesse sentido, tem uma vantagem grande porque é bastante flexível. Tem vários técnicos de produção dentro da mesma estrutura. A fábrica da Atlantis tem técnicas que se podem utilizar também na porcelana. Conjugando tudo isto, dá para fazer coisas interessantes dentro do espírito da marca.

 

 GC – Em várias das notícias publicadas sobre o processo de recuperação da empresa, fala-se da modernização da rede de distribuição como uma das peças essenciais. Há 10 anos, havia produtos Vista Alegre nas prateleiras dos supermercados e máquinas Nespresso nas lojas da marca. O que mudou e como está hoje estruturada esta rede de distribuição?

NB – Temos o posicionamento da marca sustentado em várias coisas: o produto, o preço e os canais. A partir do momento que se decide que a Vista Alegre tem de ser uma marca de prestígio, naturalmente, não pode estar em certos canais de distribuição.

Primeiro, apostou-se na rede própria de lojas. Na altura, abrimos várias lojas e criámos o conceito de “flagship store”, que abrimos em Lisboa e no Porto e depois acrescentámos Ílhavo e Aveiro, já este ano. Neste momento, temos quatro “flagship stores” em Portugal e três no estrangeiro, em Madrid, em Barcelona e em São Paulo. Considerou-se que, no primeiro nível, tivéssemos “flagship stores” que tivessem a gama alargada da Vista Alegre e que permitissem mostrar a marca como julgávamos que deveria ser mostrada.

Depois, temos uma rede de lojas próprias – em shopping e de rua – que ronda os 30 pontos de venda. Assim como outras lojas, noutras partes do mundo, que são em colaboração com parceiros locais. Além da nossa rede de lojas, vendemos para outros canais, como a retalhistas e lojas com quem trabalhamos diretamente, distribuidores em alguns mercados e distribuidores de hotelaria.

Os canais são vários, mas o que se fez foi uma reorganização total dos mesmos. Definimos em que canais se deveria estar e em que canais não se deveria estar e, dentro daqueles em que se deveria estar, como é que se deveria de estar.

 

GC – O online tem sido também importante para o crescimento das vendas?

NB – Sim. Neste momento, temos sete lojas online. Temos algumas lojas por país, específicas de certos países. É uma das áreas que tem sustentado o crescimento e o conhecimento da marca. É um canal que está em franco crescimento.

 

GC – Num regresso às origens, a Vista Alegre voltou a recuperar a tradição de colaboração com artistas e criadores, como as estabelecidas com Manuel Cargaleiro e Joana Vasconcelos ou as associadas ao mundo da moda, como as com Christian Lacroix e Oscar de la Renta. O que é que estas parcerias vieram trazer à marca?

NB – Várias coisas. Uma delas é a “contemporeinização” da marca. Hoje, a moda dita muitas tendências e até, às vezes, em indústrias que não têm relação direta, mas que são influenciadas por ela. A criação de tendência é parte da moda.

O que foi definido, do ponto de vista de produto, foi que a Vista Alegre não quer ser seguidora. Não queremos ir às feiras ver o que os outros andam a fazer, para depois começar a fazer também. Sendo uma marca de prestígio, é uma marca que tem de criar tendências no sector.

Para criar tendências, começámos a participar com quem cria as tendências. Assim, ligámo-nos a designers que considerávamos que eram influentes para a criação de tendências. Hoje, a Vista Alegre, quando vai às feiras, já é seguida e é uma “fazedora de tendências”. As pessoas vão lá ver o que é que andamos a fazer.

 

GC – Foi difícil a decisão de abandonar uma marca como Atlantis pelo caminho? O vidro e o cristal continuam a ser uma área de negócio importante?

NB – Não foi difícil porque teve que ser, por uma questão estratégica. A Vista Alegre tinha uma taxa de notoriedade, em Portugal, de 98%. A Atlantis tinha uma taxa de notoriedade muito inferior. Nos mercados externos, esse número era muito pior ainda.

Considerou-se, então, que para ser uma marca global, tinha que ser uma marca forte, o que requer sempre grandes investimentos. Se tivéssemos duas marcas, nunca iria conseguir fazer isso, porque o investimento iria diluir pelas duas.

Adicionalmente, as marcas estavam cada vez mais cruzadas. Quando se desenvolve um serviço de mesa, por exemplo, desenvolve-se logo com todos os elementos. Há, inclusive, peças que resultam do cruzamento das duas técnicas, que levam porcelana e cristal. Fazia sentido que as marcas se juntassem numa só. Até porque, e é uma parte curiosa, nos primeiros 50 anos da marca, desde que foi fundada, a Vista Alegre produzia vidro e cristal, não porcelana. Ou seja, em 1824, a Vista Alegre arrancou com a produção de vidro e de cristal.

O vidro e o cristal continuam a ser uma área importante. É uma área onde estamos a investir, por exemplo, na renovação das tecnologias. No ano passado, investimos num forno novo para a produção de cristal. No vidro, temos vindo a apostar no vidro artístico e fomos buscar pessoas para o produzir, porque o vidro ainda tem muito para dar.

 

GC – Adquirida pelo Grupo Vista Alegre, em 2018, a Bordallo Pinheiro passou por um processo de recuperação semelhante. Quais os principais desafios porque passou? A marca está hoje no patamar ambicionado?

NB – Quer a Vista Alegre, quer a Bordallo Pinheiro têm um objetivo: tornarem-se uma marca global. O que é algo bonito de se dizer, mas muito exigente de se fazer. Ambas as marcas têm esse potencial de ser a marca de referência do sector.

Claro que são duas marcas distintas, com produtos muito diferentes. Mas a Bordallo tem um potencial enorme para crescer. Se formos ver o crescimento anual da Bordallo, tem sido a dois dígitos.

Contudo, a estrutura produtiva não estava preparada para este crescimento. Daí que, no ano passado, teve de se fazer a ampliação da fábrica para mais de 60% da capacidade, porque já não estávamos a conseguir entregar produto. Os clientes não estavam satisfeitos com o nível de serviço, porque encomendavam hoje e só recebiam o produto passado um mês, porque, efetivamente, a fábrica não tinha capacidade. Assim, fez-se a reestruturação completa e ampliação da fábrica. Hoje, tem a capacidade produtiva instalada e está estável para melhorar o serviço ao cliente e para crescer.

A Bordallo abriu três lojas próprias, duas em Paris e uma em Madrid, porque sente que há esse potencial de crescimento e como marca própria tem o seu caminho. No dia 5 de fevereiro, fizemos uma campanha com a Bordallo no metro de Paris, com outdoors em cerca de 180 estações, para divulgar as duas lojas que tínhamos aberto. É uma aposta na internacionalização da marca.

 

 GC – Qual a visão estratégica para a Bordallo?

NB – A estratégia é ser uma marca global. Uma marca de culto, no sentido em que é uma marca bastante diferente daquilo que se vê e que existe a nível internacional. Tudo sempre assente na obra de Rafael Bordallo Pinheiro, porque foi ele que teve a ideia. Ele é a génese de se criar uma fábrica que transformasse tudo o que havia na natureza em cerâmica. Na época, havia algumas referências, mas ele conseguiu levar a ideia bastante mais longe do que outros o fizeram.

 

GC – Que importância tem a manutenção da produção em Portugal?

NB – Acreditamos que a produção em Portugal é fundamental para as marcas. Primeiro, por causa do controlo técnico, pois são marcas muito rigorosas no processo de controlo de qualidade. Aquilo que temos visto de outras marcas que se deslocalizaram foi alguma perda na qualidade do processo.

Segundo, as marcas têm uma ligação muito grande com Portugal e com os portugueses, com a história da cultura portuguesa. São marcas que, dificilmente, deslocalizariam a totalidade da produção para a Ásia, como algumas fizeram.

Terceiro, o know-how de produção está todo cá. A pintura à mão, a ornamentação, a modelação, entre outras, são técnicas e conhecimentos que vêm de gerações e gerações, o que facilita muito o processo.

Às vezes, é difícil em perceber como é que isso se traduz na prática. Mas, se eu quiser fazer uma peça mais complicada – porque a cerâmica não tem um comportamento linear –, estas pessoas sabem algumas técnicas, algumas até bastante rudimentares, mas que permitem que as coisas se façam. É todo um know-how acumulado. Eles dizem “isso é fácil” e a peça é possível. Sem o conhecimento deles, não era possível.

 

GC – Que balanço se pode fazer dos acordos com o Club Med e IKEA, assim como com os produtores de conhaques Hennessy e Rémi Martin?

NB – São parcerias importantes para o grupo em áreas específicas. No caso da IKEA, é uma fábrica que resultou da colaboração da Vista Alegre com a IKEA na área de grés.

São colaborações importantes e clientes importantes, não só do ponto de vista do negócio, mas também do ponto de vista técnico. Como são áreas muito específicas, com exigências muito diferentes das da Vista Alegre, porque temos um negócio muito diferente destes modelos, acaba por nos trazer desafios e um processo de aprendizagem grande, até relativamente a uma forma diferente de olhar para as coisas.

 

GC – O que seria um bom ano de 2020 para o grupo e para as suas marcas?

NB – Ter bons resultados que permitam continuar a criar condições para a sustentabilidade das empresas. Depois, conquistar quota de mercado em alguns mercados prioritários. Portanto, que a marca cresça nesses mercados para ganhar mais autonomia. E tornar-se mais global, com mais notoriedade dentro dos mercados onde atua. Isso é muito importante. A fase seguinte será trabalhar a notoriedade da marca em mercados prioritários.

Depois, conseguir implementar a visão estratégica do alargamento do conceito da mesa para “lifestyle”. Este é um ponto em que a Vista Alegre está a dar os seus primeiros passos, mas o caminho, inevitavelmente, será esse.

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