Desde agosto de 2024, há um português na presidência da Daymon International: Nuno Afonso. Assumiu o cargo num momento de transformação da consultora norteado pelo propósito de acrescentar valor na criação de marcas próprias. Nesse ponto de viragem, Lisboa converteu-se no centro nevrálgico da operação global. O cérebro de uma nova visão, numa empresa que, em 50 anos, tem tido uma palavra decisiva a dizer na quota de mercado da marca própria. A obra, porém, não está acabada e o caminho – advoga o gestor – passa por assumir a marca do retalhista como uma marca, com uma identidade e uma estratégia claras que, com qualidade e inovação, façam crescer a categoria e, com ela, o negócio. É tempo, pois, de deixar o “própria” fora da conversa.
Grande Consumo – Como recebeu o desafio para assumir a presidência da Daymon International?
Nuno Afonso – Estou na Daymon há quase dez anos. Entrei em abril de 2015, com funções na área de estratégia e criação de marcas. Nessa altura, acabou por ser natural a evolução para o departamento de marketing estratégico, com a missão de o restruturar tendo em vista a década que estava a começar, a de 2020. Mais tarde, foi-me dada a oportunidade de passar para as operações, de que fui vice-presidente. Iniciámos um processo de transformação muito interessante e, mais uma vez, como uma evolução natural da experiência que trazia, integrei a equipa que estava a conduzir essa mudança. E os acionistas convidaram-me, entretanto, para liderar nos próximos tempos e implementar essa transformação.
GC – O que está em causa nessa transformação?
NA – É uma transformação necessária, no sentido de estarmos mais prontos para resolver os novos desafios dos nossos clientes e dos nossos parceiros neste mundo das marcas próprias. Tem a ver com uma decisão estratégica muito importante, que aumenta o valor da Daymon, e que passa por trabalharmos de forma unificada todas as regiões do mundo. Nos últimos anos, tínhamos estruturas operacionais em cinco regiões e, de certa forma, trabalhávamos um pouco separados. Ora, um dos grandes valores da Daymon para os seus parceiros é sermos uma empresa que lhes mostra o mundo e essa divisão prejudicava esse valor.
Agora, a partir de Lisboa, gerimos as regiões de forma mais unificada, embora tenhamos responsáveis operacionais em cada uma delas. Mas o centro nevrálgico da propriedade intelectual está em Lisboa. Somos globais e temos de ser locais também, mas já não é uma mera repetição.
Esta estratégia acrescenta-nos valor, mas, acima de tudo, acrescenta valor para os nossos clientes, porque somos mais eficientes, mais rápidos, concentramos mais informação. Imagine uma cadeia de supermercados na América Latina que quer desenvolver uma marca própria: agora, tem uma entidade central que identifica as tendências na categoria em causa, estuda como se aplicam essas tendências localmente, passa à fase de desenvolvimento de produto e seleciona os fornecedores ideais. Os processos tornam-se mais eficientes. E o interessante é estarmos a construir esse cérebro em Lisboa.
GC – Que mais-valias resultam do facto do cérebro estar em Lisboa?
NA – Deixe-me só recordar que um dos grandes clientes que a Daymon teve no passado foi a Jerónimo Martins e foi assim que nasceu este escritório, em Lisboa. Mas, voltando às vantagens, há uma de que, nós, portugueses, nos esquecemos e que é a posição geoestratégica do país. Basta pensar nos horários: conseguimos falar com pessoas da costa oeste dos Estados Unidos e com pessoas do sudoeste asiático, temos o horário perfeito. Além disso, Lisboa é um centro de ligação área, que nos permite chegar à América Latina e a África, mas também à Ásia. A experiência mostrou que é uma localização interessante. E há um terceiro ponto, que se prende com a qualidade dos recursos. Os investidores começam a reconhecer Portugal nesse âmbito. Existem boas universidades, fazem-se bons recrutamentos e os jovens de outros países gostam de começar a carreira em Portugal. Aliás, temos uma equipa multicultural. Tudo isto gera confiança nos acionistas.
“Temos de deixar cair o ‘própria’ . É uma marca. Antes da Daymon, trabalhei no retalho e, nessa altura, chamava-se marca branca, depois marca própria. É um tiro no pé, porque gera a perceção de que não é um produto tão bom como o produto principal da categoria”
GC – Neste contexto de transformação, é um homem com uma missão?
NA – Diria que é uma equipa com uma grande missão. O meu trabalho é produzir as condições ideais para que a equipa tenha a possibilidade de maximizar o seu conhecimento e ajudar os nossos clientes.
Deste escritório saem marcas para o mundo inteiro. A parte interessante é que, neste momento, mais de 90% da nossa faturação em Portugal é para o mundo.
Neste momento, não trabalhamos com retalhistas portugueses. Como mencionei, já tivemos uma relação muito positiva com a Jerónimo Martins, desenvolvemos a marca própria do Pingo Doce e do Recheio até 2018.
Mas o mercado é pequeno, pelo que decidimos focar-nos mais na comunidade produtiva. Trabalhamos com fornecedores nacionais, com os quais fazemos produtos de marca própria para os nossos clientes externos.
GC – Sendo a Daymon uma empresa global, identifica muitas diferenças no mercado da marca própria nas várias geografias?
NA – Há muitas diferenças, sobretudo na perceção do que a marca própria deve ser. E essa perceção gera diferenças de maturidade. Há mercados menos desenvolvidos com uma visão como a que já existiu em Portugal e na Europa – a de que o preço deve ser o mais baixo possível. E há mercados mais desenvolvidos em que a questão deixou de estar no preço, passando a estar na competitividade, na criação de marcas com uma identidade própria e no desenvolvimento de produtos com qualidade e que representam uma solução para os consumidores.

GC – Nessa dualidade, qual o perfil de mercado em que é mais desafiante trabalhar?
NA – São necessidades diferentes e ambas interessantes. Mas, dando uma resposta assertiva, é mais desafiante trabalhar num mercado mais desenvolvido. Porque já não estamos a falar do típico “copiar” o que já existe na categoria, competindo pelo preço. Trata-se de procurar o que o consumidor necessita, de ser capaz de inovar, de liderar a categoria. E, nesse sentido, a marca própria compete com todas as outras marcas, pelo que tem de ser trabalhada como uma marca. O que é mais desafiante.
No entanto, também é muito interessante trabalhar num mercado em que a marca própria tem 2% a 3% de penetração e é, essencialmente, de importação. É muito valioso desenvolver a marca própria e ver que, ao longo dos anos, atingimos os 8% a 10% e que começa a haver interesse do próprio país em investir na capacidade produtiva para deixar de importar tanto.
Ainda assim, dado que contribuir para a aceleração da presença da marca própria no mercado é onde reside a nossa cadeia de valor – e voltando ao início da minha resposta –, diria que um mercado já maduro é mais desafiante. Porque quando a concorrência é forte, temos de procurar o produto ideal para a diferenciação. E, aí, tanto os clientes como nós próprios crescemos. Num mercado como o inglês e o alemão, desenvolver um produto é como encontrar uma agulha num palheiro, estamos numa “no man’s land” e isso ajudar a acelerar o nosso conhecimento.
GC – Qual é a visão da Daymon para a marca própria?
NA – Temos de deixar cair o “própria”. É uma marca. Antes da Daymon, trabalhei no retalho e, nessa altura, chamava-se marca branca, depois marca própria. É um tiro no pé, porque gera a perceção de que não é um produto tão bom como o produto principal da categoria. Mas, a partir do momento em que a começamos a gerir como uma marca – e os retalhistas em Portugal já o fazem – com conceito, com qualidade, com uma identidade, essa perceção muda.
A marca dita própria é o caminho do retalhista para ter a sua marca, é a ferramenta que tem para implementar a sua estratégia no mercado de uma forma independente. Dependendo do posicionamento que adotar, tem a sua marca para o passar para o cliente. Se, como retalhista, for importante oferecer aos meus consumidores produtos saudáveis ou biológicos, tenho a capacidade de o fazer com a minha marca. E isso significa diferenciação, significa que consigo aplicar a minha estratégia através do meu produto. E se só vender marcas dos outros, nunca vou conseguir ir para lá do preço ou da experiência em loja. Já com a minha marca consigo tudo o que as outras marcas conseguem.
Esse é o caminho que a marca dos retalhistas vai percorrer. E a visão da Daymon, desse ponto de vista, é que a marca própria é o grande instrumento para os retalhistas implementarem a sua estratégia. É com a sua marca que os retalhistas vão passar com mais força o seu posicionamento. Com uma mensagem clara, com capacidade de trabalhar o consumidor de forma direta e sempre de uma forma competitiva.
GC – Como olha para o mercado português no que toca à maturidade da marca da distribuição?
NA – Os principais operadores têm níveis de penetração elevadíssimos e um nível de investimento na marca própria igualmente elevado. E há um dado muito interessante: às vezes, os retalhistas inovam mais do que as marcas dos fabricantes, o que é um grande indicador do grau de maturidade. Isso consegue ver-se em Portugal, em várias categorias. Os operadores portugueses estão largamente nessa fase. Claro que ainda há espaço para crescer e ainda há espaço para inovar, mas estamos a chegar lá. Aliás, Portugal é dos países da Europa com maior penetração da marca própria, o que significa que houve um bom trabalho dos operadores.
“O objetivo da marca própria evoluiu. Hoje, já não é só um produto mais barato, é um produto de qualidade, um produto com uma funcionalidade específica que não existe na indústria. Um exemplo claro é o das áreas de conveniência, em que a distribuição tem estado a investir, com uma oferta que ajuda a vida dos consumidores”
GC – Quando se fala em competitividade, é inevitável falar em preço, o que, em determinados cenários económicos, é determinante para os consumidores. Em que medida tem sido motor do crescimento da marca própria?
NA – Essa realidade pode ter várias interpretações. Mas é claro que, perante a oscilação económica do país, o consumidor pode ter necessidade de fazer um “downgrade” das suas escolhas. Aliás, analisando historicamente, vê-se que a marca própria conhece uma aceleração nesses momentos.
O que se repara, depois, é que, quando a economia volta a estabilizar, não há um voltar atrás. A penetração de marca própria pode baixar ligeiramente, mas não há uma quebra. E isto porque a situação económica mais frágil promoveu uma aceleração da experimentação e da aceitação. Quando se experimenta, qualquer preconceito relativo ao produto – de que é só preço e não qualidade – esbate-se. E uma grande percentagem de consumidores mantém-se com a marca própria, mesmo quando a vida melhora.
GC – A sombra da qualidade continua a pairar sobre a marca própria?
NA – Os retalhistas, especialmente aqueles para quem a marca própria é estratégica, estão a investir na qualidade e exigem-na dos parceiros com que trabalham. Estão a investir em departamentos de qualidade, em laboratórios para monitorizar a consistência do produto. E o consumidor percebe a qualidade.
Além disso, o objetivo da marca própria evoluiu. Hoje, já não é só um produto mais barato, é um produto de qualidade, um produto com uma funcionalidade específica que não existe na indústria. Um exemplo claro é o das áreas de conveniência, em que a distribuição tem estado a investir, com uma oferta que ajuda a vida dos consumidores. E estes percebem que o retalhista lhes entrega uma necessidade. Há competitividade no preço, mas com atributos que os consumidores percebem como benéficos. É a junção dos atributos que faz a diferença.
GC – Mencionou que há marcas próprias que têm sido mais inovadoras do que as de fabricante. A inovação é um dos caminhos para a afirmação deste mercado?
NA – Sim, é um dos atributos que provoca a experimentação. E podem ser inovações tão simples como um novo sabor de gelado ou uma embalagem que torna mais fácil abrir ou conservar o produto. São fatores que levam à experimentação e, a partir do momento em que gosta do produto, o consumidor vai manter a escolha.
Esta máquina da constante inovação visa criar o “excitement”, aquele entusiasmo pela novidade que é importante para posicionar a marca junto do consumidor. Não é necessariamente inovação “per se”. Basta ver a associação a personagens dos filmes de animação: as marcas próprias já estão a ser geridas a este nível.
O motor da inovação são sempre tendências. Ou se tenta perceber o que o consumidor quer ou se cria essa necessidade. Daí os estudos que fazemos para perceber as tendências dominantes e, em função disso, se determinado produto vai ou não ter aceitação. E, quanto mais forte for a tendência, mais interessante a inovação e, logo, a aceitação. A funcionalidade dos produtos é um dos impulsionadores; vemo-lo em muitos países do norte da Europa. Mas a sustentabilidade também, até porque há metas a atingir, há obrigatoriedades a cumprir. Nesse sentido, vamos assistir a uma revolução no “packaging”. E é interessante que haja retalhistas com metas mais ambiciosas do que as regulamentações e a colocá-las na sua identidade. Mais uma vez, a marca própria é a ferramenta ideal para mostrar ao consumidor esse compromisso.
Este artigo foi publicado na edição N.º 90 da Grande Consumo