“A globalização terá que ser repensada, pelo impacto negativo que o corte dos canais de abastecimento internacionais provoca”

O que aconteceria se parasse a distribuição? Que impacto poderia ter para a vida das pessoas e para a economia? Este foi o mote para a conversa com Carlos Ruivo, presidente da Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes (APIC), sobre o impacto da pandemia do coronavírus neste sector e todos os esforços que têm sido feitos, por parte das empresas, para manter a entrega dos produtos alimentares em segurança. Com um “sentimento de missão”, o abastecimento e a segurança alimentar nunca estiveram em causa, apesar dos constrangimentos enfrentados por estas empresas para continuarem a laborar. Mas a crise não tem passado ao lado do sector, com 80% das empresas associadas da APIC a reportar perda de vendas. Numa altura em que se tentam traçar alguns caminhos para a recuperação, Carlos Ruivo sublinha a necessidade de privilegiar a produção nacional, para diminuir a dependência aos mercados externos em produtos que facilmente podem ser produzidos em Portugal. Um movimento que, seguramente, ajudará à recuperação mais rápida da economia nacional.

 

Grande Consumo – Como é que a pandemia está a afetar o negócio do sector cárnico?

Carlos RuivoAinda não é possível medir o total impacto da pandemia no sector, mas já é possível ter uma ideia e o cenário não é nada animador. Se, numa primeira fase, nas primeiras semanas da crise, as vendas se mantiveram ou até subiram para algumas empresas e para determinada tipologia de produtos, nas últimas três semanas, as vendas têm vindo a diminuir, especialmente na última.

Tal como em outros sectores da economia, são as pequenas e médias empresas (PME) que mais estão a sofrer com a crise. Neste momento, temos alguns associados com 80% de quebras nas vendas e muitos que entraram em lay-off. Lamentavelmente, dependendo da duração da pandemia, algumas empresas poderão vir a fechar.

 

GC – Qual é o peso percentual das lojas da distribuição moderna alimentar para as vendas dos associados da APIC?

CRA percentagem é muito variável e depende da estratégia de cada empresa e do mix de produtos de que estamos a falar, mas poderá variar entre os 40% e 60%. A verdade é que, quando analisamos o contributo para a rentabilidade, essas percentagens podem cair significativamente, chegando a menos de metade dos valores que referi.

 

GC – Alguma vez esteve em causa o abastecimento das lojas? A alimentação dos portugueses, no que diz respeito à oferta de produtos cárnicos, alguma vez esteve em risco?

CRNunca esteve em causa o abastecimento das lojas e muito menos houve risco de abastecimento das mesmas. Existe um sentimento de missão por parte da indústria e de fortalecimento das parcerias com os nossos clientes. Além disso, as grandes empresas do sector, apesar de alguns ajustes necessários, continuam a laborar com alguma normalidade, pelo que a alimentação dos portugueses nunca esteve em risco.

 

GC – Quais foram os principais constrangimentos gerados pela Covid-19? Que soluções é que os associados da APIC encontraram?

CROs principais constrangimentos sentidos pelas empresas do sector prendem-se com a falta de alguns equipamentos de proteção individual, como luvas, máscaras e desinfetantes, que já eram utilizados na indústria alimentar antes desta crise de saúde pública, o que obrigou as empresas a recorrer a alternativas mais dispendiosas.

Neste momento, a gestão é diária, sendo que um dos principais problemas prende-se com algumas matérias-primas auxiliares, como material de embalagem e gás (CO2) para conservação dos produtos.

Além disso, devido às regras de distanciamento social impostas, as empresas tiveram de se reorganizar, criando mais turnos, para reduzir ao máximo ajuntamentos, para que fosse possível continuar com a produção sem colocar em causa a segurança dos seus trabalhadores, ainda que com impacto de aumento dos custos de produção.

 

GC – Como é que está a ser garantida a segurança alimentar dos produtos comercializados pelos vossos associados? Que medidas foram tomadas para assegurar a habitual distribuição dos produtos?

CRA segurança alimentar e o controlo de qualidade sempre fizeram parte do dia-a-dia na indústria: a maioria das empresas do sector são certificadas em normas de qualidade e de segurança alimentar e há anos que são usadas toucas, máscaras e luvas para o fabrico dos produtos.

Nesta fase, as empresas continuam a trabalhar com elevados procedimentos de rigor de qualidade e da segurança dos produtos e os controlos oficiais, realizados pela Direção Geral de Veterinária, decorrem com normalidade.

Para enfrentarmos a pandemia de forma mais eficiente, implementámos a estratégia de medir a temperatura de todos os trabalhadores à entrada das unidades de produção, foi imposto o distanciamento social nos espaços de refeição, foram introduzidos mais pontos de higienização.

Todos os colaboradores que possam ter sintomas, como febre ou tosse seca, são imediatamente informados que não podem entrar nas unidades de produção, sendo acompanhados pela medicina do trabalho que decide quais os procedimentos a efetuar.

 

Carlos Ruivo, presidente da Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes (APIC)

 

GC – Portugal é um país deficitário na produção animal em alguns dos sectores de atividade. Como é que o sector consegue rivalizar com a concorrência vinda de Espanha, por exemplo, com os operadores do país vizinho a conseguirem colocar carne no nosso país a preços extremamente competitivos?

CRPortugal tem uma capacidade de produção suinícola de 60% para as necessidades do mercado em fresco e em produtos de charcutaria. Pelo facto de sermos deficitários na produção, as indústrias têm de recorrer a mercados externos, maioritariamente a Espanha.

É, efetivamente, muito complicado rivalizar com um país como Espanha, que tem níveis de produção de, aproximadamente, 170%. Isto faz com que, muitas vezes, o mercado português consiga comprar carne de porco a um preço mais reduzido, inclusive face ao preço praticado no país de origem. Os espanhóis preferem vender para o exterior o excesso a um preço mais competitivo, salvaguardando o preço no mercado interno, que é o seu principal comprador. Nos últimos anos, o preço de venda dos porcos em Portugal é, em média, 10 cêntimos mais baixo que em Espanha, segundo dados da Bolsa Mercolleida.

Neste momento de pandemia Covid-19, pensamos que os governos e os decisores terão de repensar a sua estratégia e deixar de comprar mais barato, privilegiando a produção nacional para não estarmos dependentes dos mercados externos em produtos que facilmente podemos produzir. Aliás, a globalização terá que ser repensada, pelo impacto negativo que o corte dos canais de abastecimento internacionais provoca.

Ganharemos em termos de balança de transações e teremos reservas estratégicas, como, por exemplo, os alimentos.

A dependência do exterior ficou evidente nesta crise com a situação das máscaras, pois tivemos que importar. Existiram momentos com muita escassez e o que estava disponível teve aumentos exponenciais. O que era impensável, aconteceu.

Ninguém pode garantir que esta seja a última crise de saúde publica e, por isso, é necessário preparar o futuro com a devida antecedência.

 

GC – Mesmo em contexto de pandemia, a carne importada que chega a Portugal consegue ser mais barata do que a produzida dentro de portas?

CRSim. Tendo em conta que existem países como a Espanha, que continuam a ter níveis de produção elevadíssimos e preferem continuar a escoar o seu produto para fora. Sendo Portugal um país deficitário na produção, que sentiu ainda mais dificuldades durante esta crise de saúde pública, esta realidade continua a manter-se.

 

GC – Não é contraditório, de alguma forma, que apesar de Portugal ser deficitário na produção animal, em alguns sectores de atividade consiga, ainda assim, exportar? O mercado exterior traz a valorização monetária que o mercado interno não aporta à produção cárnica nacional, ou é uma questão de escoamento de produto?

CRNão é contraditório. As empresas têm de encontrar soluções para se manterem ativas no mercado. Quando o seu produto não é valorizado, têm de, obrigatoriamente, procurar alternativas no mercado externo para conseguirem sobreviver e manterem os postos de trabalho.

 

GC – Como é que se poderia resolver a questão da produção deficitária, aberta que está a porta da Ásia, com a abertura das exportações para a China e Coreia do Sul, em 2019?

CRA questão poderia ser resolvida incentivando ao aumento da produção suinícola. Será muito importante o apoio de alguns dos organismos públicos, que deveriam ser mais céleres a tomar decisões e colaborativos na resolução dos problemas que podem condicionar a produção nacional.

O mercado asiático é, de facto, muito atrativo e poderia ser uma grande aposta para o tecido empresarial português. Porém, não basta ter vontade. É necessário que sejam criadas condições para que as empresas nacionais cresçam com consistência e regularidade, para que possam produzir mais, exportar mais e a preços mais competitivos.

 

GC – Acredita que a pandemia da Covid-19 poderá trazer consigo maior apetência pelo consumo de carne nacional? Poderá haver um “game changer” com esta pandemia, uma vez que comprar e consumir local é uma questão de sustentabilidade económica, mas também social?

CRTenho visto, com agrado, em muitas redes sociais, o apelo feito ao consumidor para consumir o que é fabricado em Portugal (560 no início do código de barras). Se o consumidor fizer este movimento, seguramente ajudará a uma recuperação mais rápida da economia nacional, no entanto, também os associados da APED terão de seguir esta linha de pensamento. Se todos contribuirmos, mais rapidamente conseguiremos ultrapassar esta crise.

 

GC – Tem-se observado a mudança dos hábitos de consumo, com, por exemplo, o aumento da venda de produtos fatiados, de baixa gramagem, em detrimento de embalados em maior volume. Acredita que é uma tendência a manter-se? A indústria soube reagir com formatos adequados e com inovação associada?

CRNa realidade, por uma questão de comodidade e de reduzir o tempo nas lojas, os consumidores tem preterido os produtos de charcutaria/corte pelos produtos de livre serviço ou embalagens de consumidor final.

O Horeca está muito reduzido e as fábricas tiveram de se adaptar (as que tem condições para isso) para produtos de menos peso, ou seja, embalagens de consumidor final.

Materializou-se, desde que estamos em período de quarentena, pelo incremento na venda de produtos fatiados e também nos produtos enlatados, pela maior facilidade de armazenamento e vida útil alargada.

A inovação não é imediata, tem o seu processo temporal normal. Por exemplo, precisamos de uma vacina urgente para a Covid-19 e não sabemos se demora um ano ou mais.

 

GC – Tem defendido a revisão da taxa de IVA nos últimos dias. Era uma medida importante para a vitalidade do sector? Que outras soluções seriam bem vistas pela APIC?

CRUma redução, ainda que temporária, da taxa do IVA para 6% em produtos como o fiambre, chouriço ou presunto, entre outros, que são taxados a 23% atualmente, teria benefícios para empresas e consumidores. Temos um elevado número de desempregados no país e muitas famílias a viver no limiar da pobreza, pelo que qualquer baixa de preços ajudaria e muito.

Também seria importante aumentar a disponibilidade de linhas de apoio à tesouraria para as empresas – já que estamos, neste momento, numa fase de formalização com as Sociedades de Garantia Mútua – e promover a venda de produtos produzidos em Portugal.

 

GC – Aumentar os preços aos intermediários e, consequentemente, ao cliente final é uma medida fora de questão? Manter o valor justo é uma preocupação do sector?

CRExiste uma grande preocupação da indústria em não aumentar os preços dos produtos transformados, aos intermediários e ao cliente final. Poderá haver algum ponto de venda que tenha feito alguma especulação, como já aconteceu noutros mercados, mas a grande maioria das empresas tem mantido o valor justo dos produtos e o cuidado de não se aproveitarem desta situação pandémica que estamos a atravessar.

Neste momento, os nossos clientes estão a comprar os produtos ao mesmo preço que os adquiriam anteriormente.

 

GC – A reabertura dos mercados tradicionais e da restauração, mesmo que forma progressiva, seria um bom estímulo económico para o sector e não só?

CRA reabertura dos mercados tradicionais, cafés e restauração seria muito importante, principalmente para o segmento dos produtos tradicionais de charcutaria, como, por exemplo, os chouriços regionais, paios, presuntos, entre outros. Estes segmentos estão completamente parados e muitas empresas dependem dessas vendas para subsistirem.

Defendemos um regresso progressivo da atividade económica, sempre com a máxima segurança e devida proteção (máscaras), pois isso irá estimular o sector, gerando vendas para as PME, além de ser também uma fonte de receita para as outras empresas que fazem retalho tradicional.

 

Esta entrevista foi publicada na edição N.º 62 da revista Grande Consumo.

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