Os grandes armazéns também se abatem?

José António Rousseau, docente e investigador da UNIDCOM/IADE
José António Rousseau, docente e investigador da UNIDCOM/IADE

O conceito de loja de departamento ou grande armazém transformou, radicalmente, o carácter do comércio a retalho, a partir de 1850, ano em que Aristide Boucicaut abriu, em Paris, na margem esquerda do Sena, uma loja disruptiva para a época, com a insígnia Le Bon Marché, que chegou a atingir, em 1872, a impressionante superfície de vendas de 25 mil metros quadrados e o incrível número de seis mil empregados. O seu interior era amplo e diversificado, com materiais diferentes e inovadores, tais como vidro, aço inoxidável e espelhos que atraíam, refletiam e multiplicavam os milhares de produtos expostos. Estes e os serviços que oferecia aos consumidores, e a publicidade que deles fazia, muito contribuíram para a construção de uma nova maneira de pensar as práticas de consumo, com experiências personalizadas e únicas, para satisfazer e realizar desejos e expectativas sociais e individuais dos consumidores, através de inovações como os elevadores para os clientes, caixas registadoras, novas formas de organização do espaço e novos serviços, como, por exemplo, WC femininos, cabeleireiros, salas de leitura, restaurantes e serviços de lavandaria. As lojas de departamento introduziram também mudanças revolucionárias no sistema de venda, como os preços fixos, a embalagem e rotulagem de produtos, margens comerciais mais baixas, elevado índice de rotação de stocks, processos de devolução e troca de produtos e, até, a venda por correspondência e serviços de entrega ao domicílio, para além da criação de novas categorias profissionais, remuneradas com comissões sobre as vendas e consequente evolução da carreira profissional dos empregados.

 

O caso nacional

Em Portugal, nunca existiram verdadeiros “department stores”, embora tenham existido algumas insígnias que tentaram aproximar-se deste conceito, nomeadamente, os Grandes Armazéns Alcobia, fundados em 1870 e situados na Rua Ivens 14, que encerraram a sua atividade em 1950; a Casa Eduardo Martins, sita na Rua Nova do Almada 103 a 115 e Rua Garret de 1 a 15, fundada em 1889 e desaparecida no grande incêndio do Chiado, em 1988; os Armazéns Grandella, com entrada pelas Rua do Carmo e Rua do Ouro, fundados em 1891 por um dos raros visionários portugueses do comércio, Francisco Grandella, no qual funcionavam 40 secções diferentes, em 11 pisos, considerados, à época, um projeto “desmedido e louco”, tendo sido também uma vítima do incêndio do Chiado, encontrando-se, hoje, o edifício, que manteve a sua fachada intacta, ocupado pela insígnia sueca H&M. E, claro, a incontornável Companhia dos Grandes Armazéns do Chiado, que se instalou, em 1894, no edifício ainda hoje existente, mas transformado, após o incêndio, em centro comercial, cuja divisa já era na época “vender sempre mais barato que todos” e que mudou, em 1899, para “ganhar pouco servindo bem”, quando a empresa Nunes dos Santos a adquiriu, por trespasse, aos comerciantes franceses Louis Boneville e Émile Philopot, seus proprietários originais.  Em 1914, os Grandes Armazéns do Chiado empregavam mais de cinco mil pessoas nas 21 sucursais e agências que possuíam em 1940. Nos dias de hoje, o único verdadeiro representante do conceito “department store”, em Portugal, é a insígnia espanhola El Corte Inglés, com lojas em Lisboa e Vila Nova de Gaia.

 

Desafios

Após um domínio que durou mais de 100 anos e, principalmente, após a 2.ª Guerra Mundial, os grandes armazéns têm vindo a passar por inúmeras dificuldades de natureza endógena e exógena, nomeadamente, quanto às primeiras, custos fixos pesados, excesso de pessoal e elevados encargos comerciais e institucionais. Entre as segundas, apontam-se o surgimento de novos conceitos comerciais, como os hipermercados, grandes superfícies especializadas e centros comerciais; o desenvolvimento do comércio especializado através de sistemas de franquia; o agravamento dos constrangimentos de estacionamento e circulação automóvel das zonas comerciais de centro de cidade, assim como a saída para as periferias de habitantes e serviços. Na verdade, este conceito é particularmente sensível às alterações de natureza demográfica ou de conjuntura económica, porque possui um sortido excessivamente largo e profundo (entre 1,5 e três milhões de SKUs) e os seus desempenhos operacionais têm sido medíocres e vindo sempre, de uma forma generalizada, a cair.

Não obstante a situação difícil em que se encontram, em praticamente todos os países, decorrente da sua localização urbana e de custos operacionais elevados, os grandes armazéns têm procurado reagir a este declínio acentuado, através, basicamente, de quatro tipos de ações: a intensificação das suas especificidades através de fortes campanhas de imagem e de serviços acrescidos; a aposta na compra por impulso para aumentar a compra média; o aumento da frequência de compra e do grau de fidelização da clientela; o aperfeiçoamento da gestão, otimizando o sortido e reduzindo os custos. Não admira, assim, que este género de lojas tenha sido, nos últimos anos, objeto de novos reposicionamentos, quer nos Estados Unidos, quer na Europa, perseguindo algumas tendências que apontam no sentido da procura de novos sectores ou da especialização em ramos dominantes; do abandono da inicial pretensão de “ter tudo”; da criação de secções muito especializadas com a natureza de “store in store” ou “franchise corners” e na diversificação, através da venda à distância ou da criação de filiais ultra especializadas. As linhas de renovação deste conceito terão, assim, de passar por uma maior eficácia operacional – reorganização das compras e da gestão de stocks, redução de custos, maiores rotações e uso de novas tecnologias; pela redefinição do sortido – retirada de algumas famílias de produtos, posicionamento mais ofensivo das marcas de moda e desenvolvimento de mais marcas próprias; pelo refrescamento da imagem – renovação das lojas, desenvolvimento de novos serviços, mobilização e formação do pessoal; e pela retoma do crescimento, por via da abertura de novos conceitos, como aconteceu com a Lafayette Maison, em Paris, e com a Lifestore da Marks & Spencer, em Newcastle.

Em ambos os casos, o sortido apresenta-se não por produtos, mas por ambientes e modos de vida. Na Alemanha, as insígnias Karstadt-Hertie e Kaufhof-Horten seguiram estas tendências, o mesmo acontecendo com o Printemps, Galerias Lafayette e Nouvelles Galeries, em França, De Bijenkorf et Vroom e Dresman, na Holanda, Selfridges e Harrod’s, no Reino Unido, e La Rinascente, em Itália, mas a tendência de declínio deste conceito é inexorável, uma vez que se verificam, em simultâneo e de forma generalizada, dois dos principais sinais: a quebra do ROI e a estagnação da expansão.

 

Futuro

Contudo, estou convencido de que o futuro dos “department stores” se encontra na sua miscigenação com outros conceitos comerciais, tais como os hipermercados e os centros comerciais, e no desenvolvimento dos seguintes processos operacionais: mudar o foco de vendas para serviços e experiências, o que exigirá criar mais e novos serviços personalizados, complementares e convincentes, como, por exemplo, inovações de produtos e embalagens, entregas ao domicílio e aposta na combinação de lazer, divertimento e compras, permitindo que os clientes experimentem produtos e partilhem as suas experiências nas redes sociais; evoluir para estabelecimentos híbridos físicos/digitais, uma vez que os clientes esperam, cada vez mais, que os sistemas de loja e seus colaboradores os reconheçam através de todos os canais e pontos de contacto, gerindo e integrando os dados de fontes diferentes, numa perspetiva omnicanal; e implementar uma infraestrutura correta, investindo na automatização de tarefas rotineiras para libertar os colaboradores de processos manuais e deixar que eles se concentrem na venda consultiva.

Há muito que defendo a aplicação da Lei de Lavoisier ao comércio, pelo que, assim, tal como na Natureza, também na evolução do comércio nenhum conceito comercial apareceu do nada, nenhum se extinguiu totalmente e todos se transformam num contínuo processo de transformação permanente. E será esse processo de transformação o futuro dos “department stores”.

José António Rousseau, docente e investigador da UNIDCOM/IADE
José António Rousseau
Docente e investigador da UNIDCOM/IADE

Pedro Pimentel, diretor geral da Centromarca

“O que não se consegue medir, não se consegue gerir”

Tiago Simões, Diretor de Marketing da Sonae MC

“Omnicanalidade é um conceito que faz parte do nosso léxico há muito tempo”