Economia circular na moda

Domingos Esteves, especialista em retalho
Domingos Esteves, especialista em retalho

A indústria da moda é responsável por 8% das emissões de gases com efeito de estufa, consome anualmente 215 biliões de litros de água e produz 2.167 toneladas de plástico que chega aos ambientes marinhos. A indústria têxtil gera uma quantidade enorme de resíduos, ao ser uma produção em linha. Talvez, também por isso, esteja classificada como a segunda indústria mais poluente do planeta.

No concerne ao retalho de moda, a economia circular começa pelo eco-desenho dos artigos, ou seja, desenhar e planificar, considerando o uso de materiais reciclados e os critérios de reciclabilidade que permitam, na prática, saber se as misturas de fibras utilizadas irão permitir, a posteriori, a sua separação e reciclagem. Outros conceitos relacionados são a descarbonização, o uso de materiais naturais e de fibras sintéticas, o local de produção, os sistemas logísticos, a durabilidade dos produtos, o fim dado aos resíduos têxteis e tudo o que possa, de alguma maneira, impactar a pegada de carbono de cada produto.

Para se cumprir o Acordo de Paris, não resta outra alternativa senão a de optar por modelos de negócio mais circulares. Seguramente, entrarão em equação aspetos como o desenvolvimento tecnológico (por exemplo, a impressão 3D) e o custo dos materiais reciclados face aos materiais naturais de primeiro uso.

Certo é que, cada vez mais, o consumidor está consciencializado para os impactos negativos da “fast fashion” e as empresas que realmente não consigam operar num modelo de negócio circular podem vir a desaparecer, num curto espaço de tempo.

 

Chegar à neutralidade antes de 2050

A descarbonização é um imperativo e uma emergência, já que o último relatório sobre emissões de CO2 das Nações Unidas indica que estamos muito longe dos objetivos do Acordo de Paris. Se não agirmos já, o planeta aquecerá entre 2,4 a 2,8 graus. Passa a ser um imperativo legal, pelo compromisso assumido na Lei Europeia do Clima, que o classifica como um imperativo meio ambiental, um imperativo geopolítico e económico e, como tal, também um imperativo social.

À medida que a regulamentação aumenta, as empresas têm a necessidade de rever os seus objetivos e traçar novas metas estratégicas e prioridades. Se, nos anos anteriores, o grande foco foram as matérias-primas e a sua rastreabilidade, agora, os grandes operadores centram os seus objetivos em alcançar a neutralidade de carbono, até 2050. As estratégias de sustentabilidade são cada vez mais amplas e envolvem cada vez mais áreas de negócio. A indústria tem claro que não pode continuar a atuar como antes e que é muito importante saber como se fazem as coisas e medir os impactos. Ao fim ao cabo, as “coisas boas” que se façam em prol do planeta acabam por ser igualmente boas para o negócio. O crescimento que todos procuram tem de vir baseado em melhores práticas e em decisões responsáveis.

Continuará a ser importante saber a origem das matérias-primas, seguir toda a cadeia de valor e tentar que os produtos sejam mais sustentáveis e amigos do ambiente. Saber, depois, como fazer chegar essa informação ao consumidor é fundamental e crítico. Ser transparente e credível pode, sem dúvida, ter um papel relevante na hora de garantir a confiança do consumidor.  Os consumidores querem claramente saber sobre a origem dos produtos, como foram fabricados, quais as matérias-primas usadas e como foram utilizados os recursos naturais, mas igualmente qual a pegada de carbono que deixam. Muitos grupos de moda estiveram, este ano, debaixo de pressão, críticas e acusações por “greenwashing”. A regulamentação e a fiscalização estão, desde logo, mais atentas a práticas enganosas e isso impactará o índice de transparência das empresas, bem como reduzirá a confiança dos consumidores. Atenção, pois, aos grandes “claims” publicitários, já que o que se diz tem de estar comprovado.

 

Segunda mão abre espaço

Não se trata de uma novidade, mas começa a ser algo obrigatório em todos os grupos de moda. A venda de artigos usados é um mercado em crescimento e que apoia a economia circular, que permite ampliar o leque de clientes atuais e, até, melhorar as margens de negócio, já que, de uma maneira geral, os artigos em segunda mão não necessitam de tantas promoções ou descontos. Permitem reduzir custos e ser mais atrativos junto dos consumidores, assentes numa estratégia de inovação.  Sabe-se que os consumidores Millennial e da Geração Z preferem comprar artigos em segunda mão a artigos novos, pelo que as perspetivas são de que o consumo destes artigos cresça três vezes mais rápido que a moda de primeira mão, até 2026 (relatório “Retail’s delicate balance” da KPMG).

Para que seja uma estratégia consistente, deve estar totalmente integrada, tanto online como na app da marca e em lojas físicas selecionadas. É um movimento em voga tanto para as marcas de luxo como para de “fast fashion”, motivado claramente pela necessidade de serem mais sustentáveis, mas, igualmente, pela atual menor disponibilidade económica dos consumidores. Passará, sem dúvida, por uma mudança cultural, que incluirá todos os participantes no processo de criação da moda, desde os designers, aos fabricantes e distribuidores, fomentado pelo princípio de comprar menos e reutilizar mais.

 

Onde colocar o foco

Muitas empresas usam a palavra sustentável e se denominam de sustentáveis quando, na realidade, não o são. Devemos, pois, ter em atenção alguns aspetos relevantes:

 

  • Seleção de tecidos: é aqui que se inicia a estratégia de sustentabilidade de uma marca de moda. Não basta que seja uma fibra natural para se garantir um produto sustentável. Tem de se ter o controlo de todo o processo prévio e posterior por detrás desse tecido, como foi semeado e recolhido, verificar o uso da água e de outros recursos naturais em todo o processo, saber que processos se utilizaram na sua coloração e acabamentos, quais as condições de trabalho dos fabricantes e dos seus trabalhadores. Será igualmente interessante considerar alternativas à produção de fibras naturais e o seu impacto ambiental versus o uso de tecidos reciclados e ainda fatores de relevância posterior, como a facilidade de cuidar dos artigos, a possibilidade de reparar ou de reciclar.

 

  • Transparência: ponto muito crítico e onde muito se abusa, de um ponto de vista de marketing e mensagens publicitárias. Um estudo da União Europeia indica que grande parte das mensagens de moda sustentável, na realidade, não são verdadeiras. É prática corrente o uso de mensagens ambíguas, que não especificam claramente as razões de um produto ser sustentável. Só uma transparência completa de toda a cadeia de valor pode realmente ser a base comprovativa de um produto sustentável. A regulamentação nesta área irá jogar um papel determinante, mas é necessária maior fiscalização. Pouco a pouco, o consumidor dará muito mais importância à informação e à transparência de um artigo e isso passará a ser um fator extra na sua decisão de compra.

 

  • Valor, preço e rentabilidade: na definição do preço de um artigo, as marcas não devem considerar somente a rentabilidade final que pretendem obter, mas igualmente outros fatores relevantes. O ideal seria que o preço certo de um artigo fosse o preço honesto, que inclui todos os custos relacionados com a produção (tecidos, recursos, desenho, transporte) e outros como packaging, fotografia, modelos, comunicação, publicidade nos diferentes canais de comunicação, mas também o custo das devoluções, das peças estragadas, etc. Para obter rentabilidade, é importante evitar outros custos extra e inesperados. É muito importante conseguir estimar corretamente as vendas e não acumular stock desnecessário.

 

  • Informação para o consumidor: as etiquetas são um dos aspetos que mais condicionam a escolha de um artigo. Por muito simples que pareça, é aqui onde se cometem mais erros, que condicionam bastante não só a rentabilidade de um artigo (por criar custos extra), mas também o seu impacto ambiental (devoluções).

O cuidado dos artigos representa cerca de 20% da pegada de carbono e, por isso, a relevância de alargar a vida útil. Tudo começa com instruções claras sobre o cuidado dos artigos.

 

  • Logística e distribuição: é preciso ter muito claro todo o processo de última milha, o peso da logística inversa e o impacto ambiental ocasionado pelas vendas online e, sobretudo, pelas devoluções. Desde o uso de meios de transporte menos poluentes ao horário das entregas, muito ainda se tem de estudar no sentido de reduzir a emissão de dióxido de carbono originado por todos os canais de venda. O uso de tecnologia ajudará na hora de otimizar todos os processos, a estimar corretamente a venda e os stocks, o “fitting” e tamanhos, de forma a evitar o crescimento das devoluções (atualmente, na ordem dos 40% para compras online).

 

Neste momento, todas as empresas deviam ter já os seus planos estratégicos assentes em modelos de economia circular, para não correrem o risco de perder credibilidade. É muito importante que as empresas e os seus diretores definam prioridades e que sejam transparentes e coerentes na comunicação dos objetivos propostos. É fundamental a construção de confiança, não só junto dos consumidores, mas igualmente de todos os colaboradores da empresa, que os motive a continuarem a ser rigorosos na construção e implementação da estratégia, conscientes de que muitos dos impactos não terão resultados visíveis a curto prazo. A sustentabilidade é um tema de todos: investidores, acionistas, diretores, colaboradores, consumidores, fornecedores, reguladores, ativistas, etc.

Este artigo foi publicado na edição N.º 79 da Grande Consumo.

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