Comércio em tempos de pandemia: o desenvolvimento das plataformas electrónicas

Vera Carvalho Cardina, advogada
Vera Carvalho Cardina, advogada

Com a declaração do Estado de Emergência, em Março de 2020, motivada pela situação de pandemia causada pelo vírus da Covid-19 e o consequente confinamento obrigatório, as plataformas de venda electrónica ganharam um especial relevo, quer na vida das empresas, quer, particularmente, na vida dos consumidores.

O confinamento obrigatório, que se seguiu à Declaração de Estado de Emergência em Portugal, determinou o encerramento das lojas físicas de venda de bens considerados como não essenciais – e restringindo fortemente o acesso aos estabelecimentos que permaneciam abertos, com a imposição de restrições a horários de funcionamento e de número de clientes admitidos nas instalações – levou a que os consumidores, a fim de evitarem deslocações, procurassem meios alternativos para satisfazerem as suas necessidades de consumo, seja de bens essenciais, seja de bens não essenciais. Os meios de compra à distância, com a Internet à cabeça, em forte crescimento nos últimos anos, surgiram como primeira alternativa viável e eficaz para os consumidores. Esta alteração na forma como a procura se apresentava no mercado levou a que, do lado da oferta, inúmeras empresas apostassem nos meios de compra à distância, nomeadamente digitais.

Segundo dados do INE, “a percentagem de utilizadores de comércio eletrónico registou em 2020 o maior aumento da série iniciada em 2002, mais 7 p.p. que em 2019. Em 2020, 44,5% das pessoas dos 16 aos 74 anos fizeram encomendas pela internet nos 12 meses anteriores à entrevista e 35,2% nos 3 meses anteriores. A quantidade de encomendas através de comércio eletrónico aumentou significativamente: o grupo dos utilizadores que fizeram 3 a 5 encomendas aumentou 4,0 p.p., os que fizeram 6 a 10 encomendas aumentou 9,5 p.p. e os que fizeram mais de 10 encomendas aumentou 6,9 p.p. A importância despendida por encomenda também aumentou, em mais 15,7 p.p. no caso de encomendas entre 100 e 499 euros e mais 8,0 p.p. para encomendas de valor igual ou superior a 500 euros”.

O crescimento exponencial deste mercado acarretou preocupações acrescidas quanto à segurança das transacções, ao seu processamento e, naturalmente, quanto aos direitos e deveres tanto das empresas, como, sobretudo, dos consumidores. 

 

Fenómeno acompanhado

Naturalmente, a União Europeia tem vindo a acompanhar o fenómeno e a reforçar, ao longo dos anos, a legislação em matéria de consumo. Todas estas modificações na forma de aquisição de bens e/ou serviços deram origem a um conjunto de iniciativas legislativas da União, encontrando-se, presentemente, a decorrer o prazo para transposição para o nosso ordenamento jurídico, através do competente acto legislativo nacional, de três Directivas neste âmbito.

A Directiva (UE) 2019/770 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2019, que regulamenta certos aspectos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, e a Directiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2019, relativa a certos aspectos dos contratos de compra e venda de bens, deverão ser transpostas até 1 de Julho de 2021, sendo que as suas normas apenas poderão ser aplicadas a partir de Janeiro de 2022.

Por seu turno, a Directiva (UE) 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de Novembro de 2019 (a chamada “Directiva Omnibus”), que visa assegurar uma melhor aplicação e a modernização das regras da União em matéria de defesa dos consumidores, deverá ser transposta até 28 de Novembro de 2021 e as suas normas deverão começar a ser aplicadas a partir de 28 de Maio de 2022. Esta Directiva assume particular interesse, porquanto a mesma vem alterar a Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011 (a Directiva Direitos dos Consumidores), introduzindo, entre outras questões, os conceitos de “mercado em linha” e de “prestador de um mercado em linha”, vulgarmente conhecidos como os Marketplaces.

 

Plataforma electrónicas

Nos últimos anos, várias plataformas electrónicas têm vindo a disponibilizar, paralelamente à venda aos seus produtos, espaços de venda para empresas e particulares terceiros à sua actividade, os quais funcionam de forma independente das plataformas electrónicas onde se inserem. Na maioria das vezes, estes profissionais ou consumidores encontram-se inclusivamente fora de território nacional e até da União Europeia, regendo-se por normas diversas àquelas a que as plataformas estão submetidas. Este aspecto é fundamental porquanto, em algumas plataformas, pode não ser imediatamente perceptível para o consumidor qual a proveniência do produto que pretende adquirir e quais os direitos a ele associados (por exemplo, prazos de garantia).

A União Europeia pretende criar um conjunto de obrigações de informação por parte da entidade que disponibiliza o Marketplace, o prestador em linha, nomeadamente quanto aos principais contornos do negócio, identidade da entidade a contratar, dos direitos que lhe assistem em termos de legislação aplicável e das obrigações contratuais desses terceiros. Esta informação deve ser prestada de forma clara, precisa e completa, de modo a ser facilmente apreendida pelo consumidor. Outros direitos devem, também, ser acautelados, nomeadamente em matérias relevantes, como sejam a das trocas, devoluções e garantias. Caberá agora a cada um dos Estados Membros desenvolver as linhas gerais estabelecidas nas várias Directivas e regulamentar a forma como estes deveres e direitos serão exercidos nos seus países.

O Governo português já expressou a sua intenção de prestar particular atenção ao tema dos Marketplaces, nomeadamente, através de uma eventual responsabilização do prestador em linha perante o consumidor. Contudo, na presente data, é ainda cedo para avaliar que repercussões esta legislação poderá vir a ter no funcionamento e, até mesmo, na manutenção dos Marketplaces como os conhecemos.

 

Nova Agenda do Consumidor

Saliente-se ainda que a Comissão Europeia aprovou, no final do ano passado, a Nova Agenda do Consumidor para os próximos cinco anos, onde se abordam alguns temas derivados da situação de pandemia vivenciada e dos novos desafios que esta colocou, e continua a colocar, às empresas e aos consumidores. Dos cinco domínios essenciais previstos na referida agenda, frise-se o domínio da transformação digital, onde se prevê, entre outras, a revisão da Directiva Direitos dos Consumidores, de modo a combater as práticas comerciais em linha que desrespeitem o direito dos consumidores, e o domínio da protecção dos consumidores no contexto global, elaborando-se um plano de acção com a China para reforço em matéria de segurança dos produtos que são comercializados através da Internet.

Em conclusão, nos próximos anos, esperam-se profundas alterações em matéria de direito do consumo, sendo criados novos mecanismos e deveres a serem adoptados pelos profissionais para protecção dos consumidores.

*a autora escreve ao abrigo da grafia pré-Acordo Ortográfico

Vera Carvalho Cardina, advogada
Vera Carvalho Cardina
Advogada

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